terça-feira, fevereiro 10, 2009

Quem tem medo do Estado?

Simon Schwartzman

Comentário a David Easton, "O Sistema Político Sitiado Pelo Estado," em Bolivar Lamounier, editor, A Ciência Política nos Anos 80, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1982, 151-155.

O ataque do Professor David Easton ao ressurgimento de Estado na ciência política contemporânea baseia-se principalmente em dois pontos interrelacionados. O primeiro é uma tradução bastante devastadora das conceitualizações de Nicos Poulantzas sobre o Estado para o português corrente. O resultado desse trabalho é mostrar que o supostamente estrutural conceito marxista de Estado é insustentável, e como Althusser e Poulantzas, de um lado, e Parsons, de outro, são "funcionalistas sistêmicos". Concordo inteiramente. O segundo ponto, mais geral, é que o conceito de Estado tem sido usado e abusado demais, tem centenas ou milhares de significados diferentes, e "foi transformado em um termo ideológico infinitamente maleável" - e, como tal, tornou-se inútil e confuso.

Não estou certo de concordar com o segundo ponto, e ele suscita questões importantes relacionadas à sociologia das ciências sociais. Como sabemos, a adoção da terminologia da análise de sistemas nas ciências sociais foi parte de um esforço maior para dar a essa disciplina um "status científico", e para livrá-la das imprecisões e ambigüidades da linguagem comum e do discurso filosófico. Todos nos lembramos de Robert K. Merton citando Whitehead: "uma ciência que hesita em esquecer seus fundadores está perdida!". Esse esforço visava a desenvolver uma linguagem autônoma e precisa para as ciências sociais, que permitiria a formulação de proposições suscetíveis de teste empírico e a emergência gradativa de uma disciplina madura, respeitável, e tão distante da linguagem comum e da especulação filosófica quanto a física moderna.

Muitos anos se passaram desde que esse programa de ação foi delineado, e podemos agora tentar dois tipos de avaliação. O primeiro, mais geral, é se estamos realmente mais perto de uma "ciência madura" nas ciências sociais, Merton esperava que estivéssemos - e, caso contrário, o que aconteceu com a teoria dos sistemas e suas tentativas de entrar no reino da análise política e conquistá-lo.

Parece-me evidente que estamos provavelmente mais longe de uma ciência social madura e "estabelecida" hoje do que estávamos vinte anos atrás. Certamente haverá muitos desacordos quanto ás razões disso. Uma explicação comum nos círculos acadêmicos, que acredito que o Professor Easton endossa implicitamente. é que o desenvolvimento da sociologia e da ciência política como disciplinas rigorosamente científicas foi obstruído pela ideologização da vida acadêmica, que colocou questões de interesse imediato acima da pesquisa e da teorização cientificamente orientadas, de longo prazo. O reaparecimento do conceito de Estado é por ele percebido como apenas uma conseqüência dessa invasão do campo acadêmico pela onda de modismos ideológicos. Neste sentido, o ataque ao conceito de Estado pode ser visto como uma defesa da própria pesquisa cientificamente orientada. Embora eu não negue que essa ideologização da vida acadêmica realmente aconteceu, e teve sérias conseqüências, acho que isto é apenas uma parte mais superficial da história. Mais importante é o fato de que as ciências sociais. para permanecerem vivas e se desenvolverem, devem manter um constante diálogo com as principais questões sociais, filosóficas e teóricas de seu tempo. Não estou sugerindo que as ciências sociais devem ser sempre - as palavras francesas são inevitáveis - partisan e engagé, e por isso apresso-me em dizer que tenho em minha companhia ninguém menos que Max Weber, um firme defensor da diferenciação entre as esferas acadêmica e política. Para Weber, porém, a ciência social era necessariamente histórica, porquanto seu tema eram as sempre mutáveis realidades da vida humana. Se bem que ele reconhecia e aceitava um importante papel para a elaboração sistemática dos conceitos e da teoria, foi a constante referência aos temas historicamente relevantes de cada época que deu às ciências sociais, como ele bem explicou, "o dom da eterna juventude". Este compromisso com os problemas históricos mais relevantes não significava, para Weber, que a diferença entre as ciências sociais, de um lado, e o partidarismo político e ideológico, de outro, pudesse ser ignorado. Cada uma destas esferas permanece, a seu ver, marcada por suas formas institucionais e por seus valores centrais peculiares(1).

O que Weber provavelmente esperava que as ciências sociais fizessem, no estilo intelectual europeu, era que continuassem e aprofundassem o diálogo que existia entre os cientistas sociais e seus pais fundadores sobre as questões mais centrais das sociedades contemporâneas e sobre a melhor maneira de compreendê-las e explicá-las. Sob esta perspectiva, um cientista social é um homem totalmente familiarizado com uma tradição intelectual, capaz de se referir tanto a seu passado intelectual quanto aos assuntos mais relevantes de seu tempo.

Os cientistas sociais norte-americanos, porém, em sua maioria, preferiram herdar um Weber deshistoricizado e sanitizado, e assim embarcaram em ambiciosas tentativas de construir uma ciência não histórica, não filosófica e não ideológica. Muitos êxitos foram obviamente alcançados nesse processo, que ainda está em aberto, e, um balanço final dessas conquistas, e dos fracassos, está muito longe de ser concluído.(2) Contudo, o próprio fato de que David Easton se dá ao trabalho de discutir Poulantzas mostra que há sérios problemas não somente com o conceito de Estado, mas também com sua substituição pela abordagem sistêmica. Gostaria de sugerir quais são algumas das dificuldades, numa tentativa de compreender como foi possível que um conceito aparentemente tão simples e claro, o sistema, viesse a se sentir ameaçado por aquele velho fantasma, o Estado.

Foi uma pena o Professor Easton não se ter referido em seu texto a um excelente artigo publicado há vários anos por J. P. Nettl, exatamente sobre a falta de interesse da tradição anglo-saxônica pelo conceito de Estado(3). Segundo Nettl, essa falta de interesse não era apenas uma questão de precisão e clareza intelectual. Era algo ligado a própria inexistência de estado" (statelessness) dos Estados Unidos e da Inglaterra, se comparados aos países continentais europeus. Tem também muito a ver com a ideologia liberal anglo-saxônica. O importante nessa tradição era a análise da interação entre atores sociais. Conceitos como "governo" e "autoridade" eram muito mais próximos da imagem de entidades funcionais simples e leves do que das conotações historicamente pesadas da noção de Estado. Um ponto interessante para o qual Nettl chama também a atenção é a relativa perda de interesse do próprio Marx sobre a questão do Estado. Nettl liga este fato à mudança de Marx para a Inglaterra e a sua nova preocupação, muito mais inglesa do que continental, com as relações econômicas, ao invés de poder e política. Isto ajuda a explicar também por que o marxismo ficou no final das contas sem teorias e conceitos melhor desenvolvidos sobre o Estado e o campo político em geral, uma lacuna que Poulantzas e outros marxistas contemporâneos tentaram preencher.

Não me parece que a crítica feita por David Easton às dificuldades do conceito de Estado em Poulantzas, e mesmo no marxismo em geral, embora bem sucedida dentro destes limites, seja suficiente para exorcisá-lo da análise política moderna. A força do conceito de Estado é que ele se refere a um aspecto muito concreto e generalizado das sociedades modernas - o desenvolvimento de grandes e complexas estruturas organizacionais que concentram o poder, tendem a manter o monopólio do uso da força, organizam-se em linhas burocráticas, têm um limite territorial definido, e assim por diante. Além disso, o Estado não é uma simples "função" dentro de um "sistema político", uma vez que. de acordo com suas diferentes histórias, cada sociedade tem seu tipo peculiar e, como diz Nettl. seu grau específico de "estaticidade" (stateness). Esta, evidentemente, é apenas uma das diversas definições possíveis de Estado. Outras são também possíveis. De qualquer maneira. acredito que se deve conservar o termo Estado como uma referência à densidade histórica e conceitual dessas estruturas a que aludi, sem ter que se pagar necessariamente o preço da ambigüidade ou de suas seqüelas ideológicas. Deveríamos simplesmente tornar explícito sobre o que é que estamos falando, e isso não é tão difícil.

Em outro artigo, C. B. McPherson mostra que a abordagem sistêmica é particularmente apropriada em ciência política quando consideramos o estado democrático como um "arranjo pelo qual cidadãos racionais e bem intencionados (...) puderam transacionar suas diferenças num intercâmbio ativo e racional entre partidos, grupos de interesse e uma imprensa livre"(4). Todavia, há outras realidades nos estados modernos - estruturas administrativas, sistemas de legitimação, aparatos coercitivos, instituições de bem-estar, e assim por diante - que não são facilmente assimiláveis através da análise de sistemas, pela razão muito simples que não são "funções" gerais, mas estruturas históricas. Esta, a propósito, é a fragilidade que a abordagem sistêmica e o marxismo estrutural, Easton e Poulantzas, têm em comum: sua tentativa de desenvolver uma estrutura conceitual geral para a análise política (o que em si não é um erro), que pudesse dispensar uma abordagem histórica e comparativa (algo a meu ver inalcançável).

Não nego que o conceito de "sistema político" poderia em princípio referir-se à mesma realidade e que poderia também ser libertado de suas freqüentes associações ideológicas com a "statelessness" (ausência de estado). O problema deste conceito não é sua falta de precisão e clareza, mas, eu diria, sua falta de especificidade. A terminologia desenvolvida pela análise de sistemas pode, como analogia e como linguagem, ser aplicada a quase tudo - é sempre possível pensar em termos de inputs, outputs, retroalimentação, regulação, entropia, informação, etc. De maneira geral. contudo, estou certo de que não estou sozinho quando me declaro cético a respeito das ambições dos que pretendem desenvolver uma teoria geral de sistemas aplicável a todos os tipos de estruturas "vivas", e que pudesse dispensar o conhecimento especifico das diferentes áreas de especialização.

A análise de sistemas realmente consegue ser mais do que um vocabulário, quando consegue gerar proposições especificas sobre o funcionamento de determinados sistemas, ou quando leva a tecnologias muito concretas para planejamento e ação. Contudo, sempre que a teoria de sistemas obtém sucesso no primeiro sentido, tende a ser substituída pelo vocabulário específico desenvolvido pelos especialistas dos respectivos campos. Por exemplo, a abordagem sistêmica funciona muito bem em biologia, mas lá é chamada, bem, de biologia. A terminologia específica da teoria de sistemas é provavelmente usada com mais sucesso em sistemas artificiais, isto é. nas ciências da computação e em pesquisa operacional, mas aqui, também, os vocabulários específicos estão tomando conta do terreno.

Acredito que o mesmo se aplica à análise política. A medida em que teorias específicas sobre estruturas e processos políticos se desenvolvem, a terminologia geral da teoria de sistemas tende a dar lugar a um vocabulário mais específico - que. na realidade, sempre existiu, e do qual a palavra "Estado" é uma parte integrante.

Concluindo, acredito que a reintrodução do conceito de Estado na ciência política contemporânea não é um mal. Pode trazer confusões e impasses intelectuais do tipo Poulantzas - mas esse é um problema que pode ser reduzido através de análises críticas apropriadas, como a do Professor Easton. Mas, por outro lado, esse conceito ajuda-nos a reestabelecer o vínculo que nos une aos temas e autores clássicos das sociedades modernas - de Hobbes e Rousseau a Marx e Max Weber - e com as realidades históricas muito concretas da construção e das transformações do moderno Estado-Nação. Liga, pois, a ciência política a suas mais autênticas preocupações empíricas e normativas, e assim a mantém jovem e viva.

Notas

1. O ponto de vista de Weber é provavelmente melhor expresso em seu artigo introdutório ao Archív fur Sozialwissenschaft und Socialpolitik sobre a objetividade nas ciências sociais, publicado por E. Shills e H. F. Finch em Social Sciences and Social Policy (Free Press, 1949).

2. A respeito dos diferentes estágios da introdução de Weber na literatura norte-americana de ciência social, ver a introdução de Gunther Roth à nova edição de Max Weber - an Intellectutal Portrait, de Reinhard Bendix (Berkeley. 1977).

3. J.P. Nettl, "The State as a Conceptual Variable", World Politics vol. XX, n.0 4, julho de 1968.

4. C. B. McPherson, "Do we need a theory of the State"? Archives Européenes de Sociologie, XVII, 2, 1977. Resumindo, sua resposta é: depende de quem somos "nós". Liberais convictos não precisam; social-democratas, sim; e também os marxistas precisam. McPherson coloca-se no segundo grupo. (Sou grato a Sérgio Abranches por haver chamado minha atenção para este artigo). <