sábado, agosto 16, 2008

Religião, Fé e Política: a Teologia da Libertação como Projeto Político Nacional

Publicado na Revista Espaço Acadêmico - Nº 58 - Março de 2006 - Mensal - ISSN 1519.6186

Por Rudá Ricci

1. Pensamento Popular, Fé e Política

A influência anglo-saxônica, racionalista, da ciência política (em especial, norte-americana) sobre parte da produção brasileira nas ciências sociais dificulta o aprofundamento da análise do sentimento religioso sobre as práticas políticas brasileiras. Nesta vertente existe uma tendência de se excluir, quase que como princípio moralista, a religião e a fé como expressões políticas. Quando se aceita esta possibilidade analítica, é comum desqualificar como expressão social relevante. Assim, política e religião, ou política e fé deveriam, como princípio racional, estar divorciadas como práticas sociais.

O marxismo, neste ponto, foi paradoxalmente mais aberto e sensível. Quando Marx sugeriu que a religião era o ópio do povo, embora tenha desqualificado a religião como projeto político, percebeu sua relevância social, porque tinha a potência de inebriar o sentimento de revolta dos explorados. Mas em Gramsci, esta questão foi melhor criticada. Num de seus textos (lembremos que Mussolini autorizava Gramsci a ler, enquanto preso político, a revista Civiltà Cattolica) o líder comunista italiano afirma:

Este desconcerto, este pânico social, característico do atual período, empurra até mesmo os indivíduos mais atrasados historicamente a sair de seu isolamento, a buscar consolo, esperança, confiança na comunidade, a sentir-se próximos, a apegar-se física e espiritualmente a outros corpos e almas aterrorizados. Como poderia, por que caminhos poderia a concepção socialista do mundo dar uma forma a este tumulto, a este formigueiro de forças elementares? O catolicismo democrático faz o que o socialismo não poderia: une, ordena, vivifica e se suicida.

Gramsci tinha uma relação ambígua com o tema. De um lado, procurava entender como uma ideologia brotava das classes subalternas e, paulatinamente, se impunha como explicação do mundo, como poder externo, a essas classes, o que configurava uma relação de dominação. De outro lado, Gramsci valorizava os conceitos religiosos como capazes de cimentar desejos e valores populares, naquilo que fundamentou como capacidade hegemônica, ou seja, a capacidade de sistematizar valores difusos, dispersos na sociedade, e consolidar uma visão de mundo legitimada, compreendida e aceita. A religião, na Itália, teria este poder simbólico de emoldurar uma cultura, uma consciência (e um inconsciente) coletiva, uma névoa que se constituía num elo entre a razão e a crença, a fé. Gerava, assim, a identidade popular.

Aqui, Gramsci se aproximou das teorias de Max Weber, para quem o pensamento dos segmentos historicamente pobres de uma população, por não se identificarem com o passado de penúria de seus ascendentes, projetava suas esperanças sociais numa utopia, numa crença em relação ao futuro. A religião, assim, é acolhida como ópio, mas como conforto e esperança. É um fenômeno sociologicamente complexo porque conforta, mobiliza, cria identidade grupal e comunitária, implica na crença em valores sociais e comportamentos comuns, pacifica e cria indignação. A possibilidade da construção do Reino de Deus sustenta e legitima a indignação e a denúncia. No Brasil, a ação pastoral se pautou por esta complexa disposição e visão de mundo, adotando uma tríade: presença, denúncia e anúncio. Presença junto aos desfavorecidos, partilhando de seu sofrimento, muitas vezes, como trabalho missionário, de auto-resignação. Denúncia enquanto indignação ao sofrimento humano, como descaso com o projeto divino. E anúncio enquanto possibilidade da justiça social, da construção do Reino de Deus. Possibilidade, bem compreendido, mas não confirmação ou promessa. Assim, a mobilização política engendrada por este discurso é profundamente utópica e se vincula à mística, ao possível inatingível. Como afirma Gramsci ao comentar o determinismo fatalista da religião:

Transforma-se em uma formidável força de resistência moral, de coesão, de perseverança paciente e obstinada. “Eu descreio momentaneamente, mas a força das coisas trabalha por mim a longo prazo.” A vontade real se disfarça em um ato de fé.

Ora, uma mobilização desta natureza possui uma racionalidade particular, porque imersa em sentimentos e intenções subjetivas, não palpáveis. Um militante social motivado pelo discurso religioso torna-se, portanto, um agente altamente confiante em seu destino e objetivos e que se reporta a uma dimensão não racional. É por este motivo que enfrenta normas, leis e forças políticas racionais. Porque crê em seus princípios e em sua comunidade religiosa. Crê que está garantido por uma justiça não-material,não-humana.

Novamente, enfrentamos aqui uma situação ambígua. Se a comunidade religiosa possui laços afetivos e de crença na mística que anuncia um mundo melhor sem prometê-lo por completo, nos deparamos com uma lógica comunitária transcendente. Uma contradição em termos, já que se torna universal e particular, ao mesmo tempo. É neste terreno que está depositada a força política da religião. Como conforto, mas também como resignação e luta social. Dialoga, portanto, com a força e a humildade, sentimentos aparentemente contraditórios, mas profundamente legitimados pelas culturas populares e comunidades subalternas (para utilizar o termo gramsciano) porque se apóia no sentimento de injustiça, de ressentimento social e esperança política.

Mas, voltemos um pouco mais nas proposições de Gramsci. A preocupação deste pensador reside nas normas de conduta prática que cada religião define e implica. A religião, sugere, pode conduzir a atitudes opostas, como já citamos anteriormente: progressista e ativa ou passiva e conservadora. Destaca, ainda, a necessidade positiva de toda religião, porque forma determinada racionalidade do mundo e da vida, numa ideologia explicativa, orgânica.

Neste aspecto, lembremos da sugestão de Émile Durkheim, para quem a noção de tempo foi fundada pelo pensamento religioso, pelo calendário religioso. A religião, enfim, ordena o mundo.

Mas, naquilo que interessa a este breve artigo, vale destacar sua original proposição de relacionamento entre marxistas e católicos italianos. Gramsci destaca que o pensamento acadêmico e filosofia elaborada são ignorados pelas massas e não têm efeito direto sobre sua maneira de pensar e agir. Este seria um primeiro desafio ao marxismo: se tornar uma referência de compreensão popular do mundo, sem se banalizar. E daí, deste desafio, surge o reconhecimento do papel da religião popular tradicional, que para o autor, é profundamente materialista:

Politicamente, a concepção materialista é vizinha do povo, ao senso comum; ela está estreitamente ligada a muitas crenças e preconceitos, à quase todas as superstições populares (bruxarias, espíritos etc). Isto pode ser observado no catolicismo popular, notadamente, na ortodoxia bizantina.

Neste caso, uma nova ideologia não será acolhida popularmente como racionalidade, mas como , sugere por fim.

O pensamento gramsciano não apenas auxilia para compreendermos a complexa relação entre fé e política como ilumina a compreensão do papel da Teologia da Libertação nos anos 80 em nosso país.

2. Teologia da Libertação e o primeiro ciclo da democratização brasileira

A Teologia da Libertação se popularizou e se enraizou nas comunidades cristãs (para além das católicas) no período de redemocratização do país, no final dos anos 70. A partir da metade dos anos 70, muitos bispos e agentes pastorais lideram um fecundo processo de articulação de núcleos católicos de resistência política, organização de comissões pastorais temáticas sob a guarda da CNBB e ação política missionária para organização e articulação de movimentos populares (vários teólogos da libertação empregaram este conceito de movimento popular que agregava todas manifestações de organização de segmentos sociais subalternos, de sindicatos a movimentos sociais).

Naquele período, o regime militar e a crise fiscal crescente possibilitaram a identificação política dos segmentos sociais mais excluídos das benesses da política econômica vigente. Havia, assim, uma compreensão racional do que foi figurativamente denominado de povo de Deus ou povo sofrido. A opção preferencial pelos pobres possui, assim, uma particularidade brasileira, porque se manifesta como reação política ao regime militar, responsabilizando-o pelo aprofundamento da desigualdade social no país. Gramsci foi muito lido por agentes pastorais neste período. Era comum padres e freiras serem flagrados lendo seus textos em ônibus e encontros de movimentos sociais nas periferias das grandes cidades brasileiras. Compreender a relação entre política, economia e organização popular para a libertação passou a ser objetivo de muitas lideranças religiosas.

A Teologia da Libertação, no final dos anos 70 e início dos anos 80, já havia criado uma miríade de organizações populares, do MST às Comunidades Eclesiais de Base, passando por muitas pastorais sociais engajadas no enfrentamento político (como Pastoral da Terra). Todas organizações estimuladas e alimentadas por este ideário organizaram-se a partir de princípios inflexíveis:

a) A organização autônoma (de partidos, por exemplo) da população excluída;

b) O anti-capitalismo;

c) O anti-institucionalismo, desconfiando de quase todas estruturas de poder hierarquizadas e burocratizadas;

d) A tomada de decisão colegiada, em estruturas de assembléia (valorizando os mecanismos de democracia direta);

e) A reação política e a exigência de direitos sociais sem, contudo, formular uma nova estrutura de poder ou projeto de sociedade.

Este conjunto de princípios impulsionou as lutas sociais no primeiro ciclo do processo de democratização do Brasil, que se inicia em meados dos anos 70 e se conclui no final da década de 80. Conformou unidade e deu vazão ao ressentimento político e sentimento de injustiça social que envolvia muitas lideranças populares e dirigentes políticos. Sustentou movimentos sociais e alimentou a multiplicação de entidades populares, de apoio aos movimentos populares. Mas se esgotou nos anos 90.

Os motivos de seu esgotamento são múltiplos, mas podemos destacar alguns mais agudos:

a) A ausência de leitura sobre a fragmentação social. A partir dos anos 80, a sociedade brasileira se tornou mais complexa socialmente. No meio rural, para ficarmos num exemplo, emergiram novas categorias sociais, como agricultores familiares integrados à agroindústria (contratados e subordinados à indústria de transformação) e assalariados por cultura (com formas muito distintas de contratação e processo produtivo). No meio urbano, a introdução de novas tecnologias fracionou as categorias profissionais, por produto e por conhecimento técnico exigido. O mercado de trabalho informal envolveu mais da metade da mão-de-obra nacional. E a explicação sobre as mazelas sociais que era tão facilmente disseminada pela Teologia da Libertação nos anos 70 e início dos 80 passou a ser insuficiente. Teoricamente insuficiente;

b) O débâcle do anti-institucionalismo: toda proposição que negava qualquer vínculo orgânico dos movimentos sociais às estruturas de poder institucionalizadas (partidos, legislativo e executivo, por exemplo) caíram por terra com a eleição gradativa de lideranças populares aos cargos legislativos e executivos. A partir da introdução de novos dispositivos legais na Constituição Federal de 1988 (como os artigos 14, 29 e 204), foi ampliada a capacidade de fiscalização e formulação de políticas públicas por organizações da sociedade civil. O país mudou e o sentimento anti-institucionalista transformou-se de desconfiança em adoção do aparelho de Estado como campo de disputa política;

c) Baixa capacidade de formulação e negociação: a Teologia da Libertação estimulou a mobilização social e política, mas não auxiliou na formulação de um projeto de sociedade. Enfim, limitou-se à metodologia de organização e mobilização (como pressão política e não como ocupação de espaços públicos de decisão), mas não como conjunto de fundamentos prospectivos. Não por outro motivo, não raro, muitos movimentos sociais fomentados pela Teologia da Libertação destinarem aos assessores (com formação técnica ou universitária) a capacidade de formulação de documentos e condução de processos de negociação de demandas;

d) Contradição entre a pregação pela autonomia e a sua partidarização: em meados dos anos 80, muitas lideranças originárias da Teologia da Libertação fizeram uma opção preferencial pelo Partido dos Trabalhadores. Inicialmente tímida, o engajamento foi aumentando a ponto de muitos agentes pastorais e teólogos assumirem papéis funcionais e de direção em governos petistas. Obviamente que a convicção política se transfigurou em disputa partidária.

Finalmente, em muitas situações, a prática oriunda da Teologia da Libertação foi extremamente racionalista e se descuidou das dimensões subjetivas. Paradoxalmente, se descuidou da alma. Na medida em que a sociedade brasileira se tornava mais complexa, mais competitiva e cruel, mais desagregada e culturalmente mais plural, demandas específicas e locais foram se esboçando e um profundo sentimento de desalento foi se espraiando.

Enfim, a Teologia da Libertação perdeu sua capacidade hegemônica nos anos 90, de discurso agregador e, ao mesmo tempo, explicativo da realidade.

Foi a partir desta fissura que o discurso carismático emergiu e os rituais festivos, espetaculares, movidos à adrenalina, foram tomando o lugar dos eventos racionais, de solidariedade política, de enfrentamento com a realidade social e de oposição às forças sociais e políticas conservadoras.

Surpreendentemente, a Teologia da Libertação se afastou da lógica popular e se aproximou de uma cultura acadêmica, politicamente formal. As organizações filiadas a este pensamento se transformaram em lugares de iniciados na lógica da disputa política, utilizando um jargão muito específico (como palavras de ordem, consensuado, trabalho de base, projeto político, entre outros). Distanciou-se da lógica da rua, embora estivesse lá presente. Mas o magnetismo da fé e a crença no anúncio da utopia não prometida deixaram de motivar ou motivaram um público cada vez mais diminuto.

E não por outro motivo, a religião e a fé passaram a mobilizar a partir de outros referenciais políticos, de um outro projeto de sociedade, mais individualista e imediatista.

A religião, enfim, está na alma do povo brasileiro. Faz parte de sua compreensão de mundo, é um lugar conhecido, familiar. Explica pelo não dito.

Contudo, nos últimos dez anos, uma sutil alteração na relação entre política e religião foi se projetando em nosso país. Muitos sentiram a mudança. Mas poucos se dedicaram a explicá-la.


Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais. Coordenador do Instituto Cultiva, Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/Brasil