sábado, dezembro 01, 2007

Partidos, eleições e democracia no Brasil pós-1985

Revista Brasileira de Ciências Sociais
ISSN 0102-6909 versão impressa
Rev. bras. Ci. Soc. v.19 n.54 São Paulo fev. 2004
Parties, elections, and democracy in Brazil after 1985
Partis, élections et démocratie au Brésil dans l'après 1985



Maria D'Alva G. Kinzo


RESUMO



Este artigo discute a relação entre partidos, eleições e democracia no contexto brasileiro atual. A preocupação principal é examinar em que medida a experiência democrático-eleitoral em vigor desde 1985 tem contribuído para a consolidação dos partidos, do sistema partidário e da democracia no Brasil. Para estabelecer os parâmetros da análise, definimos, em primeiro lugar, o significado utilizado dos termos "partidos", "eleições" e "democracia". Em seguida, analisamos a experiência eleitoral recente, salientando seu papel primordial no sentido de assegurar condições mínimas de uma polity democrática. Por fim, discutimos a experiência partidária atual, suas principais características e problemas. Empreende-se na conclusão uma breve reflexão a respeito da relação entre as experiências eleitoral e partidária e a consolidação da democracia no Brasil.
Palavras-chave: Partidos políticos; Eleições; Democracia; Instituições políticas brasileiras.
ABSTRACT
The article discusses the relationship among parties, elections, and democracy in the Brazilian current context. The main concern is examining how much the democratic and electoral experience has contributed to the consolidation of parties, party system, and democracy in Brazil since 1985. It defines the meanings of "party," "elections," and "democracy" in order to establish analysis parameters. It then analyses the recent electoral experiences highlighting its primordial role in assuring minimal conditions for a democratic polity. It finally discusses the current party experience, as well as its main aspects and problems. It concludes with a brief reflexion on the relationship between both the electoral and party experience and the consolidation of democracy in Brazil.
Keywords: Political parties; Elections; Democracy; Brazilian political institutions.
RÉSUMÉ
Cet article aborde la relation entre les partis, les élections et la démocratie dans le contexte brésilien actuel. Notre principale inquiétude est d'examiner dans quelle mesure l'expérience démocratique et électorale en vigueur depuis 1985 a contribué à la consolidation des partis, au système des partis et à la démocratie au Brésil. Pour établir ces paramètres d'analyse, nous avons défini, en premier lieu, la signification employée pour les termes "partis", "élections" et "démocratie". Ensuite, nous avons analysé l'expérience électorale récente, en mettant en avant son rôle primordial dans le sens d'assurer les conditions minimales pour une polity démocratique. Finalement, nous analysons l'expérience actuelle du système des partis, ses principaux problèmes et caractéristiques. Nous proposons, en guise de conclusion, une brève réflexion à propos des rapports entre les expériences électorales et du système des partis et la consolidation de la démocratie au Brésil.
Mots-clés: Partis politiques; Élections; Démocratie; Institutions politiques brésiliennes.
Introdução
É consenso que partidos políticos e eleições são componentes necessários de um regime democrático. Eleições livres e justas, nas quais os partidos competem por cargos públicos, são um critério crucial para identificar se um sistema político é uma democracia. No entanto, se a presença efetiva de partidos e eleições é reveladora de um regime democrático, somente a existência continuada de um situação democrática é que torna possível a consolidação de tais instituições. Embora evidente, essa observação é relevante no que diz respeito à experiência política brasileira, uma vez que o regime militar-autoritário - que se estendeu de 1964 a 1985 - não aboliu nem os partidos nem as eleições. Certamente, sob um regime que impõe fortes restrições à participação política, esse fato não é indicativo do funcionamento efetivo desses mecanismos de representação, da mesma forma que a presença de partidos políticos e de eleições em um regime pós-autoritário, por si só, não garante a democratização desse regime.
Este artigo pretende discutir a relação entre partidos, eleições e democracia no contexto brasileiro atual. Para isso, a principal preocupação que nos move é saber em que medida o contexto democrático em vigor desde 1985 tem contribuído para a consolidação dos partidos, do sistema partidário e, conseqüentemente, da democracia no Brasil. Assim, a fim de estabelecer os parâmetros deste estudo, esclarecemos na primeira seção a maneira pela qual entendemos os termos "partidos", "eleições" e "democracia". Na segunda, o foco da análise volta-se para as eleições e seu papel de assegurar as condições mínimas de uma polity democrática. Na terceira, analisamos a experiência partidária atual, suas principais características e problemas.
Democracia, eleições e partidos políticos: uma nota conceitual
A exemplo de diversos temas analisados pelas ciências sociais, democracia é um termo complexo. Muitas obras foram produzidas para discutir seus múltiplos significados e suas implicações teóricas e empíricas. Não é nossa intenção enveredar nesse debate, o que implicaria rever uma vasta literatura. Faz-se necessário, porém, delinear uma definição neste contexto. O significado de democracia aqui empregado circunscreve-se a seu aspecto procedimental, conforme conceptualização elaborada por Schumpeter,1 o qual prioriza a capacidade analítica e empírica do conceito de identificar, no sistema político, um método específico de organização, baseado em regras e procedimentos que garantem a escolha de líderes por meio da competição política e da livre participação popular. Em outras palavras, está-se fazendo referência às duas dimensões de Dahl de poliarquia - participação e contestação pública -, cuja efetividade depende de condições livres para a manifestação e a organização política (Dahl, 1971). A ênfase na dimensão política do conceito de democracia não significa que estejamos ignorando a dimensão social como parte integrante de um contexto democrático. Não estamos negando que níveis elevados de desigualdade social possam se constituir em sério obstáculo para a plena realização da democracia.2 Como apropriadamente observou Dahl, a presença de desigualdades prejudica as possibilidades de contestação pública não apenas em função do acentuado desequilíbrio na distribuição de conhecimento e recursos políticos, como também do eventual surgimento de ressentimentos e frustrações que acabam corroendo a lealdade da população para com a democracia (Dahl, 1971).
Tomar como parâmetro a definição mais restrita de democracia, permite-nos não apenas estabelecer, de imediato, a diferença entre um regime democrático e um não-democrático, como também reconhecer a importância, em países como o Brasil, dos avanços alcançados no processo de redemocratização, mesmo se limitados à esfera política. E é no âmbito desse significado de democracia que eleições e partidos políticos são considerados elementos fundamentais em uma polity democrática.
O papel das eleições no sistema político é aqui considerado (1) um elemento essencial no governo representativo, uma vez que a participação ou, na terminologia adotada por Dahl, a inclusão política esteja assegurada aos membros da polity, e (2) um meio pelo qual ganha expressão a correlação de forças dos diferentes grupos políticos, na medida em que a competição entre eles, organizados em partidos políticos, esteja garantida (a dimensão de Dahl de contestação pacífica). Eleições possibilitam não apenas a alternância de maiorias no poder, mas também a realização de dois requisitos de um governo representativo. Primeiro, representatividade, ou seja, que o Legislativo dê expressão à diversidade da polity; e segundo, responsividade, que envolve tanto a noção de um governo agindo em resposta às demandas da população, como a idéia de eficiência e competência desse governo no que diz respeito a questões que envolvem a prestação de contas à população (Sartori, 1987). Embora a representatividade possa ser assegurada pela implementação de um sistema eleitoral que permita a expressão da diversidade social e política do eleitorado em uma arena representativa, a responsividade é muito mais complexa. Sua efetividade depende, em grande parte, das condições de participação, bem como de inteligibilidade da competição eleitoral.
Com relação ao conceito de partidos políticos, apesar de seus diversos significados, é possível destacar alguns de seus traços característicos sobre os quais há um certo consenso. Em primeiro lugar, ao contexto em que os partidos atuam e, em segundo, às atividades que desenvolvem sob tal contexto.3 Os partidos têm papéis específicos em duas arenas do sistema político: a eleitoral e a decisória. Nesta última, sua atividade está associada à formulação, ao planejamento e à implementação de políticas públicas, participando como atores legítimos no jogo de poder e no processo de negociação política. São agentes fundamentais no processo democrático representativo, pois estão respaldados no voto popular. De fato, somente com base neste critério - apoio eleitoral - é possível, no contexto das democracias de massa, falar de partidos como canais de expressão e representação de interesses, como um vínculo, ainda que frágil, entre a sociedade e o Estado. Na arena eleitoral, seu papel específico é o de competir pelo apoio dos eleitores a fim de conquistar posições de poder. É por meio desse mecanismo que a cadeia de representação política se forma nas democracias representativas, uma cadeia que vincula os cidadãos às arenas públicas de tomada de decisões.
Assim, se, de um lado, a obtenção do poder político legítimo, no contexto de um eleitorado de massas, tornou-se factível por meio da organização de partidos políticos, de outro, a representação política democrática tornou-se viável à medida que os partidos modernos, ao se constituírem como tais, assumiram as tarefas de: (1) estruturar a disputa eleitoral, ou seja, definir e diferenciar as opções a serem oferecidas ao eleitor, facilitando o ato de votar e possibilitando a construção de identidades políticas; e (2) mobilizar o eleitorado, isto é, incentivar o eleitor a ir às urnas e a votar em uma das opções oferecidas, opções que se constituem como agregações de preferências, ou seja, representação de interesses. Se, no que se refere à questão da democracia, os partidos políticos são um aspecto fundamental, é sua atividade eleitoral a que tem caráter primordial. É em função disso que a análise sobre os partidos no presente contexto democrático brasileiro aqui empreendida tem a arena eleitoral como foco principal.

Eleições em um contexto democrático



Um breve exame do panorama político brasileiro da atualidade nos permite afirmar que o regime ganhou características nítidas de uma democracia. Se tomarmos como ponto de referência as duas dimensões de poliarquia propostas por Dahl, o Brasil certamente aprimorou as condições de participação e contestação pública.
Com respeito à primeira dimensão - a da inclusão - nota-se um avanço considerável nas condições de participação política. Destaca-se, em primeiro lugar, o crescimento expressivo do número de eleitores potenciais em conseqüência da universalização do direito de voto, estabelecida com a inclusão dos analfabetos em 1985; direito que se ampliou ainda mais com a Constituição de 1988, que reduziu para 16 anos a idade mínima para votar. Como evidenciam os dados do Gráfico 1, o eleitorado brasileiro saltou de 15,5 milhões, em 1960, para 94,7 milhões, em 1994, atingindo 115 milhões, em 2002. Isso significa que, se em 1960 o eleitorado abarcava apenas 43% da população adulta, já no início da década de 1980 a proporção quase duplicou, atingindo, em 2002, a cifra de 94%.
Trata-se, em segundo lugar, de um eleitorado predominantemente urbano, ou seja, a massa de eleitores residentes nas grandes cidades passou a decidir as eleições. Apesar de a maioria possuir níveis muito baixos de escolaridade e, por conseguinte, de informação política, são eleitores não mais circunscritos em pequenas cidades das zonas rurais, ambiente facilmente controlado por líderes políticos locais e onde a corrupção eleitoral era uma prática generalizada. Quanto a esse aspecto, cabe mencionar as transformações econômicas e sociais por que passou o país nas últimas três ou quatro décadas bem como suas conseqüências.
Não há dúvida de que o modelo econômico adotado pelos governos militares foi responsável, de um lado, por distorções que levaram ao agravamento da pobreza e das desigualdades sociais e regionais no Brasil; de outro, por um rápido processo de industrialização e urbanização. Esse processo resultou na inserção de um grande contingente de pessoas na arena eleitoral,4 o qual, embora não plenamente integrado à sociedade,5 passou a ter um peso considerável nas eleições (às vezes, valendo-se delas para protestar contra toda sorte de privações). Resultou também no aumento substancial do contingente de trabalhadores urbano-industriais, base para a emergência de movimentos sociais e a formação de partidos de massa. Ainda que menos proeminentes do que durante os primeiros anos da democratização, os movimentos sociais urbanos são um elemento importante da nova polity democrática. No meio rural, o processo combinado de expansão capitalista no campo e preservação de formas arcaicas de produção e de propriedade da terra teve como conseqüência o agravamento do problema da exclusão social. Em contrapartida, produziu o cimento social para a intensificação do movimento pela reforma agrária que, liderado pelo MST (Movimento dos Sem Terra), tornou-se a mais importante manifestação de desobediência social no país.6 Todas essas transformações políticas e sociais são indicações relevantes da revitalização da sociedade civil e, certamente, tiveram impacto sobre o grau de inclusão da polity democrática brasileira.
Também indicativo de avanço democrático é a instauração da incerteza como traço característico do jogo político eleitoral brasileiro. Decorrência não apenas da dimensão e das características do eleitorado - que se tornou menos sujeito ao controle político de qualquer ordem -, mas também do avanço significativo das condições de livre exercício do voto. A esse respeito, vale ressaltar o papel importante desempenhado pela Justiça Eleitoral, instituição que se consolidou como garantidora da lisura do processo eleitoral. A implantação da urna eletrônica, que desde as eleições municipais de 2000 passou a ser utilizada em 100% dos locais de votação, reduziu sobremaneira as chances de fraude eleitoral.
No que se refere à segunda dimensão de Dahl - contestação pública - os avanços foram igualmente significativos se compararmos com o período democrático entre 1945 e 1964. Nesse período a competição política era limitada não apenas pelo baixo grau de aceitação das regras do jogo - cujos sinais mais visíveis foram as diversas tentativas de intervenção militar -, mas também pelas restrições ao direito de a oposição competir livremente. Vale lembrar que o Partido Comunista, que entre 1945 e 1947 teve um significativo desempenho eleitoral nas áreas industriais do país, passou a ser considerado ilegal a partir de 1947, permanecendo fora da política partidária até 1985 (Chilcote, 1982; Brandão, 1997).
Desde o restabelecimento do governo civil em 1985, o Brasil confrontou-se com uma sucessão de problemas econômicos e políticos graves, como a hiperinflação, os diversos choques econômicos, as elevadas taxas de desemprego, os escândalos de corrupção de toda sorte e, sobretudo, o impeachment de um presidente. A inexistência de qualquer tentativa de responder a essas crises ultrapassando os limites da ordem constitucional revela uma maior aceitação e, de certa forma, a consolidação das regras democráticas. Além disso, a existência de organizações políticas, sindicatos e movimentos sociais com orientação ideológica ou base social diversas evidencia uma maior tolerância com a oposição. O mesmo se pode dizer em relação à incorporação, no sistema político, dos partidos de esquerda - hoje competidores reais na disputa eleitoral e partícipes efetivos no processo decisório. O exemplo mais expressivo disso é a emergência do Partido dos Trabalhadores (PT) como um dos principais competidores nas eleições, tanto em nível local e regional como nacional. Nesse aspecto, a democratização brasileira foi bastante inovadora, isto é, o restabelecimento do jogo partidário competitivo propiciou a criação de uma organização política com características típicas de um partido de massa, e cuja identidade coletiva foi construída por meio da associação dos trabalhadores assalariados com os setores organizados da sociedade civil.
Em 2000, o PT venceu a disputa para a prefeitura em seis capitais e em 29 cidades com população acima de duzentos mil habitantes. Além disso, ampliou consideravelmente sua presença em todo o país: a proporção de municípios brasileiros em que o PT saiu vencedor na disputa para o executivo municipal triplicou entre 1992 e 2000. Mesmo nas regiões em que sua participação relativa no poder municipal era limitada, o partido obteve resultados significativos: no Nordeste, em 2000, conquistou o dobro de prefeituras em relação a 1996; no Centro-Oeste chegou a triplicar o número de prefeituras conquistadas entre 1996 e 2000 (Tabela 1).


Mais notável ainda foi o desempenho eleitoral do PT em 2002: não apenas conquistou a presidência da República com a eleição de Luis Ignácio Lula da Silva, que pela quarta vez se candidatava, como ampliou consideravelmente sua representação nas casas legislativas. Como mostram os dados da Tabela 2, o partido ocupou, em 1990, o sétimo lugar na distribuição relativa da representação na Câmara dos Deputados, e a primeira posição em 2002; no Senado, sua força relativa não cresceu da mesma forma, mas foi suficiente para deter a terceira maior representação nesta Casa.
Em suma, as condições fundamentais para o funcionamento de um sistema democrático representativo estão instauradas. Trata-se, no entanto, de saber em que medida o jogo democrático tem propiciado a realização de dois importantes princípios associados a um governo democrático: representatividade e responsividade política. Em outras palavras, é preciso analisar se o funcionamento das instituições e dos mecanismos democrático-representativos tem assegurado que o corpo de representantes seja, de alguma maneira, um retrato da sociedade, e que os governantes eleitos prestem contas à população e exerçam suas funções com responsabilidade e eficiência (Sartori, 1987).
Quanto à questão da representatividade, podemos afirmar que o sistema de representação proporcional que rege as eleições para a Câmara dos Deputados e assembléias legislativas estaduais e municipais vem garantindo, ao menos, a representação das minorias. Ademais, o amplo leque de partidos que detêm a representação nas câmaras legislativas também faz supor que o sistema político tem alcançado um elevado grau de representatividade, permitindo que todos os setores da sociedade brasileira possam ser representados. Isso a despeito de a representação proporcional, como princípio, não ser de fato plenamente respeitada. As distorções na proporcionalidade da distribuição da representação dos Estados da federação na Câmara dos Deputados foram bastante discutidas na literatura (Soares, 1971; Lamounier, 1980; Kinzo, 1980; Lima Júnior, 1993; Nicolau, 1996). E o fato de os Estados menos populosos estarem sobre-representados em detrimento dos mais populosos tem um impacto significativo na força relativa dos partidos. Ou seja, a divisão desproporcional de cadeiras por Estado faz com que a representação partidária no Congresso não reflita com precisão a força relativa dos partidos resultante das urnas, posto que o apoio eleitoral por eles obtido não é distribuído igualmente entre os Estados. Assim, partidos como o PT e o PSDB, cuja base eleitoral, ao menos até recentemente, concentrava-se nas regiões mais urbanizadas e industrializadas do Sul e Sudeste do país, acabam conquistando proporcionalmente menos cadeiras do que obteriam se o critério de proporcionalidade fosse plenamente respeitado (Nicolau, 1997).
Contudo, é em relação à responsividade que a democracia brasileira apresenta problemas mais sérios. O sistema político está longe de possuir mecanismos capazes de assegurar um grau razoável de accountability.7 Para isso, o sistema teria de oferecer aos eleitores (1) condições de escolha entre distintas plataformas políticas ou alternativas partidárias, e (2) uma estrutura de conexão com seus representantes, aspectos que não estão inteiramente contemplados na polity brasileira.
As instituições brasileiras pouco têm contribuído para elevar o grau de inteligibilidade do processo eleitoral. Pelo contrário, diversos fatores dificultam o exercício da cidadania, como, por exemplo, o discernimento no momento de votar. Há um complexo sistema de escolha eleitoral que envolve cargos em diferentes níveis de poder - nacional, estadual e municipal - e métodos eleitorais diversos - representação proporcional para as câmaras legislativas federal, estaduais e locais, sistema de maioria simples para o Senado e sistema majoritário em dois turnos para presidente e governadores. Além disso, por ser um sistema de representação proporcional com lista aberta, as eleições para deputados federais e estaduais são primordialmente uma disputa entre candidatos individuais. E ainda, o grande número de partidos dispostos a enfrentar a disputa eleitoral em distritos de grande magnitude8 resulta em um excesso de candidatos, o que torna as opções menos nítidas para os eleitores. As regras eleitorais, ademais, têm incentivado a formação de coligações partidárias, inclusive em eleições regidas pelo sistema de representação proporcional. Isso significa que as opções eleitorais se apresentam seja como candidaturas individuais (de tal monta que impossibilita aos eleitores o acesso às informações necessárias para uma distinção mais aprimorada dos candidatos), seja como alianças eleitorais formadas por uma grande variedade de partidos.
Os problemas em torno da capacidade de o sistema propiciar um vínculo representacional relacionam-se, em grande medida, ao tamanho e à magnitude dos distritos eleitorais. Como as fronteiras das circunscrições eleitorais coincidem com as fronteiras geográficas dos Estados, cujo número de representantes (ou magnitude do distrito eleitoral) varia de acordo com o tamanho da população, torna-se difícil identificar a quem os representantes deveriam prestar contas. Como assinalamos em estudo sobre os padrões de competição na disputa para as câmaras federal e dos vereadores de São Paulo (Kinzo, Martins Jr. e Borin, 2003a e b), a concentração eleitoral ou a distritalização do voto está longe de ser o padrão dominante de competição. Identifica-se uma tendência maior à dispersão e ao fracionamento do apoio eleitoral do que redutos eleitorais claramente perceptíveis.9 Em outras palavras, o estabelecimento de vínculos entre eleitores e representantes, possível quando estes possuem base eleitoral definida, não é algo generalizado. Certamente há deputados com vínculos eleitorais definidos, seja com um grupo específico (profissional, religioso etc.), seja com uma região (a exemplo dos redutos eleitorais típicos do clientelismo). Entretanto, de modo geral, os deputados desfrutam de grande autonomia em sua atividade parlamentar, o que é particularmente comum entre aqueles eleitos nas grandes cidades. O fato de a maioria dos eleitores não lembrar quem é o seu deputado ou em quem votou nas últimas eleições legislativas é uma boa indicação da inexistência de um vínculo de representação claro entre parlamentares e eleitores.
O conjunto desses fatores impede a accountability vertical efetiva, produzindo uma situação que tende a distanciar os eleitores de seus representantes. Torna-se, portanto, extremamente difícil para a população conferir responsabilidade pelo desempenho governamental. Esse talvez seja um dos fatores que contribui para aumentar a disparidade entre o sistema partidário eleitoral e o sistema partidário nas arenas decisórias,10 traço esse que já caracterizava a política partidária durante o período democrático de 1945 a 1964 (Lavareda, 1991), e que nos leva a deslocar o foco de análise para a questão partidária.

Partidos, sistema partidário e democracia no Brasil
Uma avaliação da experiência político-partidária do Brasil a partir de 1985 requer resposta para pelo menos três indagações. Em que medida os partidos brasileiros têm desempenhado um papel relevante na integração dos eleitores ao sistema político, mobilizando-os para participar dos pleitos e para votar em uma das opções apresentadas (partidos e/ou candidatos)? Em que medida eles oferecem opções claras e diferenciadas ao eleitor, ou seja, como têm contribuído para estruturar a escolha eleitoral e criar identidades políticas? A experiência político-partidária dos últimos dezoito anos foi capaz de produzir um padrão que possa ser consolidado no futuro?
Mobilização partidária
Uma das atividades principais dos partidos políticos é buscar apoio nas urnas. Na verdade, eles se tornaram organizações políticas em função da necessidade de mobilizar os eleitores para votar. Assim, a capacidade de o sistema partidário desempenhar esse papel revela-se pelo comparecimento eleitoral. O poder de convencimento dos partidos pode ser, portanto, medido pelo índice de participação eleitoral. No caso brasileiro, porém, o comparecimento ao pleito não é uma boa indicação de participação política, uma vez que o voto é obrigatório. Há situações, por exemplo, em que o índice de comparecimento é elevado, mas os resultados eleitorais registram um número expressivo de votos brancos e nulos.11 Isso implica que precisamos, para avaliar a capacidade dos partidos de mobilizar os eleitores, restringir o conceito de participação eleitoral à parcela de eleitores que, em uma determinada eleição, tenha expressado sua preferência por uma das opções oferecidas no pleito, isto é, o percentual da população com direito a voto que compareceu às urnas e, efetivamente, votou em um candidato ou partido. Essa conduta de análise viabiliza mostrar em que medida os partidos estariam ou não desempenhando bem uma de suas funções principais, qual seja, a de mobilizar sua base eleitoral.
A Tabela 3 mostra os percentuais de eleitores que votaram num candidato ou partido nas eleições para presidência da República, governo estadual e Câmara dos Deputados no período de 1986 a 2002. De um modo geral, as taxas de participação eleitoral no Brasil não são tão diferentes das registradas nas democracias consolidadas, onde a média foi de aproximadamente 78% nos anos de 1950, caindo para 70% no final da década de 1990 (Dalton et al., 1984, 2000; Wattenberg, 1998). No Brasil, a taxa média de participação nas eleições presidenciais realizadas desde a redemocratização é de 73%.12 No entanto, os números apresentados na tabela apontam três aspectos importantes: primeiro, comparadas às eleições presidenciais, as taxas de participação nas eleições para governador e Câmara dos Deputados são muito mais baixas em 1990 e 1994 (as médias para o período são 66% e 59%, respectivamente); segundo, um declínio significativo nas taxas registradas nos três tipos de pleito entre 1986 e 1998 (nas eleições presidenciais, entre 1989 e 1998, a taxa caiu em 19%, declínio semelhante (17%) ocorreu nas eleições para governador entre 1986 e 1998);13 e, terceiro, um aumento considerável nas taxas de participação entre 1998 e 2002 nos três tipos de eleição.


Tomando esses dados como indicadores de mobilização partidária, poder-se-ia concluir que o processo de democratização no Brasil não foi acompanhado por um aumento gradual da mobilização eleitoral; pelo menos é o que apontam os dados até as eleições de 1998. No entanto, a mobilização eleitoral começou bem antes de 1985. De fato, esse foi um dos traços característicos do processo de transição democrática no Brasil, em cujos primórdios - ainda em fase de distensão do regime autoritário - a oposição conseguiu mobilizar o eleitorado contra o regime, iniciando o engajamento da população no processo eleitoral. Assim, a primeira eleição presidencial, em 1989, significou o auge do processo de mobilização. A partir daí, observa-se o declínio do engajamento político, uma vez que o jogo eleitoral democrático adquiriu um caráter rotineiro. O mesmo fenômeno verificou-se nas eleições para governador. No primeiro pleito, realizado em um contexto plenamente democrático (1986), a taxa de participação foi bastante elevada, declinando consideravelmente nas duas eleições seguintes. Essa tendência foi, contudo, revertida em 2002, quando as taxas de participação subiram dez pontos percentuais.
Digno de nota são os percentuais registrados para a Câmara dos Deputados, que até 1994 são bem inferiores aos registrados nos pleitos para governador e presidente. A explicação para isso tem a ver, em grande medida, com a posição central ocupada pelos cargos executivos no presidencialismo, particularmente na versão brasileira, cuja experiência é marcada por uma concentração acentuada de poder no executivo. Essa prática contribuiu para que os eleitores se acostumassem a prestar atenção muito mais nos presidentes, governadores e prefeitos do que em seus representantes parlamentares, tornando-se, pois, menos predispostos a participar das eleições legislativas. Ademais, não podemos esquecer de que o grande número de candidatos nesse tipo de pleito dificulta a tomada de decisão do eleitor, o que denota uma tendência à elevação de votos brancos e nulos em eleições legislativas proporcionais. No entanto, esse padrão modificou-se consideravelmente nas eleições de 1998 e 2002, quando as taxas de participação eleitoral passaram a se equiparar às registradas nos pleitos para presidente e governador (Tabela 3). É provável que o desempenho do Legislativo no processo democrático - a começar pela relevância que adquiriu durante os trabalhos da Constituinte e por seu papel no processo de impeachment do presidente Collor de Melo - possa ter contribuído para sua valorização aos olhos do eleitor, aumentando a predisposição deste a participar das eleições parlamentares. Mas esse novo padrão deve-se também a uma ação deliberada, por parte da Justiça Eleitoral, no sentido de reduzir as taxas de absenteísmo em eleições legislativas. Refiro-me à introdução de uma nova seqüência de escolha eleitoral nas urnas eletrônicas: a partir das eleições de 1998, os eleitores passaram a votar, primeiro, nos candidatos para as casas legislativas (sob o sistema de representação proporcional) e, depois, nos candidatos a presidente e governador (sob o sistema majoritário). Isso tornou imperativa a escolha de um candidato a deputado, e é provável que uma parcela substancial de eleitores tenha digitado o número correspondente ao seu candidato a governador ou a presidente quando a tela da urna eletrônica solicitava a escolha para deputado, repetindo-o novamente nas opções para os cargos executivos. Embora não se possa comprovar a ocorrência desse procedimento, é bem possível que o mecanismo criado pela Justiça eleitoral para diminuir os votos brancos e nulos nas eleições proporcionais tenha surtido efeito, mesmo porque causa estranheza o fato de nas eleições de 2002 a proporção de votos válidos para a Câmara de Deputados ter superado a registrada para governador e presidente da República.
Um segundo aspecto a ser considerado ao se analisar a questão partidária no Brasil, relaciona-se à capacidade do sistema de oferecer opções diferenciadas aos eleitores, ou seja, de estruturar a escolha eleitoral e de criar identidades partidárias. Isso nos leva ao exame da dinâmica da competição partidária e da inteligibilidade do sistema.
Fragmentação, inteligibilidade e volatilidade do sistema partidário
A despeito da controvérsia gerada em torno de a questão partidária no Brasil ser ou não um problema para a consolidação democrática,14 não há dúvida de que o sistema partidário atual é um dos mais fragmentados do mundo. Como indica a Tabela 4, o grau de fragmentação na Câmara dos Deputados, medido pelo índice de fragmentação (N) de Laakso e Taagepera (1979),15 foi de aproximadamente 3 em 1986, subiu para 9, em 1990, caiu para 8, em 1994, e para 7, em 1998, subindo novamente para 8,5 nas últimas eleições.


É certo que a dinâmica de três partidos, observada em 1986, refletia muito mais a sobrevivência de um jogo eleitoral bipartidário, que ganhou força no crepúsculo do regime militar, do que a emergência de um novo pluralismo partidário com condições de se consolidar. De forma que a fragmentação que se seguiu era esperada, especialmente em reação à camisa de força instaurada pelo bipartidarismo compulsório do regime militar. No entanto, passado este período inicial, poder-se-ia esperar uma reacomodação das forças políticas no sentido de tornar o sistema partidário mais enxuto. No entanto, a ligeira queda no índice de fragmentação partidária registrada entre 1990 e 1998 não se definiu como uma tendência, dado sua reversão em 2002. Assim, o sistema partidário continua tão fragmentado como no início da década de 1990. Além disso, como mostram os dados da Tabela 4, a intensa fragmentação não é um atributo apenas do sistema nacional de partidos; está também presente em vários Estados: treze dos 27 Estados possuem um número de partidos efetivos superior a cinco; em 22 deles os índices de fragmentação aumentaram significativamente entre 1990 e 2002.
A fragmentação do sistema partidário não seria um problema para o funcionamento da democracia caso não afetasse a inteligibilidade do processo eleitoral, isto é, a capacidade de o sistema produzir opções claras para os eleitores, permitindo-lhes escolher com base em seu conhecimento sobre os partidos ou sua identidade com eles. O problema é que no Brasil a intensa fragmentação partidária está acompanhada por uma pequena inteligibilidade do processo eleitoral. Em geral, um sistema partidário fragmentado tende a ter partidos de contornos mais definidos, alicerçados em algum tipo de clivagem social, regional ou política, proporcionando aos eleitores opções mais estruturadas e diferenciadas na disputa eleitoral. Isso não é o que ocorre no caso brasileiro, dado que a maioria dos partidos, como organizações distintas, não possui contornos claramente definidos. Isso não significa negar a existência de diferenças entre eles no plano ideológico, como vários estudos indicaram ao dispor os partidos num continuum esquerda-direita (Kinzo, 1989, 1993; Lamounier, 1989; Rodrigues, 1987, 2002; Figueiredo e Limongi, 1999). No entanto, trata-se mais de gradações ou variações do que propriamente diferenças estruturais.
Disso decorre a facilidade com que os candidatos eleitos migram para outro partido sem nenhum constrangimento16 - o que denota, aliás, a fragilidade dos partidos, no sentido de que não são organizações relevantes o suficiente para manter seus próprios quadros. Evidência mais forte é o fato de os partidos raramente se engajarem nas disputas eleitorais como atores distintos; apresentam-se, ao contrário, em alianças partidárias. Ou seja, os competidores do jogo eleitoral não são os partidos como unidades diferenciadas, mas candidatos e coligações formadas por diversos partidos, não raro de diferentes orientações ideológicas.
Pode-se argumentar que, em um contexto de multipartidarismo e de eleições majoritárias para os cargos executivos, é natural que os partidos formem alianças, principalmente em se tratando de eleições nacionais - como são as presidenciais - em um país com as dimensões do Brasil. Mas, as coligações são prática disseminada em todos os níveis - do nacional ao municipal. Tanto nas eleições para governo de Estado como para prefeitura municipal, todos os partidos, independentemente de sua dimensão ou linha ideológica, recorrem às coligações. Além disso, esse recurso é utilizado também nas eleições legislativas sob o sistema de representação proporcional, o qual se destina, justamente, a garantir a representação das minorias que, por sua vez, desejam se diferenciar dos grandes partidos.
A prática da coligação, evidentemente, se torna necessária em virtude da fragmentação do sistema partidário. Mas isso faz com que o sistema permaneça fragmentado, já que é permitido aos políticos e aos partidos formarem tais alianças. Em outras palavras, as estratégias eleitorais são construídas de forma a obter o melhor resultado no contexto institucional em que os políticos operam. A formação de alianças constitui, pois, a melhor estratégia tanto para os grandes partidos como para os pequenos. De um lado, ao se coligar com um grande partido que lança uma candidatura ao governo do Estado, os pequenos partidos garantem sua participação na coligação para as eleições proporcionais, aumentando suas chances de conquistar uma cadeira na Câmara dos Deputados ou nas assembléias legislativas. De outro, ao se aliar aos pequenos, os grandes partidos aumentam seus recursos eleitorais (o que inclui tempo maior de propaganda eleitoral no rádio e na televisão) e, portanto, suas chances de vencer a eleição majoritária. Em contrapartida, sua chance de eleger uma grande bancada no legislativo torna-se mais restrita, pois ao concorrerem nas eleições legislativas em uma lista de candidatos coligados (não previamente ordenados) os grandes partidos abrem espaço para os candidatos bem votados dos pequenos partidos da coligação.
Se para os políticos e os partidos esta é, sem dúvida, a estratégia mais racional, seu impacto sobre os eleitores está longe de ser positivo, uma vez que se vêem diante de uma disputa em que atores partidários não são claramente distintos, isto é, entidades que constroem alternativas eleitorais e identidades. Em outras palavras, torna-se difícil para o eleitor identificar e distinguir os partidos em disputa: são muitos os partidos, muitas as alianças eleitorais, cuja composição varia de um lugar para o outro e de uma eleição para outra. Ademais, a disputa eleitoral põe em evidência muito mais os candidatos do que os partidos. Em suma, a intensa fragmentação e a falta de nitidez do sistema partidário fazem com que os eleitores tenham dificuldade em fixar os partidos, distingui-los e, assim, conseguir criar identidades partidárias.17
Uma conseqüência visível desse processo é a volatilidade eleitoral - dimensão importante da estabilidade do sistema partidário (Pedersen, 1990; Bartolini e Mair, 1990). Quanto menor a inconstância, maior a probabilidade de as siglas partidárias desempenharem mais plenamente na arena eleitoral sua função de determinar as preferências eleitorais independentemente do apelo de algum candidato particular, de posições políticas pontuais ou de acontecimentos inesperados. A institucionalização do sistema partidário dificilmente pode ocorrer em contextos de grande volatilidade eleitoral. Seria esse o caso no Brasil?
Entre as democracias consolidadas, os níveis de volatilidade, segundo o índice de Pedersen, variam de um país para outro, mas raramente atingem as cifras elevadas do Brasil.18 Os dados apresentados por Nicolau (1998a) indicam que no período de 1982 a 1998, em média, cerca de 30% do eleitorado brasileiro mudou seu voto de um partido para outro em eleições consecutivas. Uma análise mais detalhada a esse respeito encontra-se em Braga (2003): os índices para a Câmara dos Deputados (reproduzidos na Tabela 5) foram calculados com base nos resultados eleitorais por município, e são apresentadas as médias por Estado nos três pares de eleições no período de 1990 a 2002. O exame desses dados nos revela, primeiro, que os valores são bastante elevados nas eleições ocorridas entre 1990 e 1994. De fato, o nível de instabilidade do sistema partidário alcançou seu ápice em 1990, o que era reflexo das mudanças por que passaram os partidos durante o período de elaboração dos trabalhos da Assembléia Constituinte (1987-1988) - por exemplo, a criação do PSDB a partir de uma dissidência do PMDB e a reorganização do PDS após uma fusão com dois outros partidos. Em segundo, tomando como parâmetro a média total dos valores dos Estados, verifica-se que o índice de volatilidade decresceu entre 1994 e 1998 (de 46,2 para 40,4), mas se manteve inalterado entre 1998 e 2002 (40,1). Ou seja, o índice de volatilidade estabilizou-se em um nível bastante elevado. Em terceiro, observa-se que esse índice varia consideravelmente de um Estado para outro, independentemente do tamanho de seu eleitorado,19 e, em alguns Estados, aumentou. Esse crescimento deve ter a ver com o fato de alguns partidos terem conseguido se expandir nacionalmente, mudando, assim, a dinâmica eleitoral anteriormente estabelecida em alguns Estados. A manutenção de um número bastante elevado de partidos na competição política, obriga-os a se expandir nacionalmente, expansão que ainda se encontra em processo, o que significa que a volatilidade deverá se manter elevada. Ou seja, ainda não se estabeleceu no Brasil um padrão definitivo de apoio partidário. O sistema partidário brasileiro está, portanto, distante de uma consolidação.


Considerações Finais20
Observando o período de mais de dezoito anos de experiência democrática no Brasil, pode-se afirmar que a via eleitoral e a saída constitucional se afirmaram como caminho de alternância no poder e de resolução dos impasses políticos. E a eleição presidencial de 2002 foi certamente um marco no processo de consolidação da democracia. Isso, não apenas pelo que representou a eleição de Lula para presidente da República (um líder político de esquerda, oriundo das camadas populares), como também pelo fato de ter ascendido ao poder um partido de peso na arena política que ainda não havia sido eleito para o poder executivo em âmbito nacional. Completa-se, portanto, o ciclo de consolidação democrática no Brasil ao se ultrapassar todos os possíveis obstáculos à livre e efetiva alternância no poder.21
Desse modo, podemos afirmar com segurança que eleições e democracia estão asseguradas no Brasil. O que dizer, no entanto, da temática relativa aos partidos e ao sistema partidário e sua relação com a consolidação democrática? A esse respeito, contudo, não se pode afirmar que o avanço tenha sido considerável.
O cenário partidário aqui delineado - marcado por intensa fragmentação, fragilidade partidária, baixa inteligibilidade da disputa eleitoral e elevada volatilidade eleitoral - são evidências de que, ao longo desses dezoito anos de democracia, os avanços em direção à consolidação do sistema partidário foram bastante modestos. De modo que, a despeito de as eleições do último ano terem sido um marco na consolidação da democracia, o evento democrático que delas resultou - ascensão de um novo governo, apoiado por um partido de esquerda - está longe de significar um passo decisivo rumo ao fortalecimento do sistema partidário.
Primeiro porque o resultado da disputa para os governos estaduais e para as casas legislativas reproduziu, em grande medida, o quadro anterior, caracterizado por uma elevada fragmentação de poder: nada menos que dezenove partidos conseguiram representação na Câmara (sete deles com representação superior a 5%, mas nenhum com força parlamentar superior a 18%), e oito partidos diferentes elegeram governadores de Estado. Essa situação torna imperativos a formação de um governo de coalizão bastante heterogêneo, porque formado por inúmeros partidos, e a ampliação artificial da representação partidária de forma a fortalecer uma base aliada. Não é mero acaso que o governo Lula tenha formado uma coalizão ainda mais ampla do que a do governo anterior - dez partidos fazem parte da base do governo.
Segundo porque foi reeditado, já no início do novo governo, o fenômeno de "troca-troca partidário" na direção da base aliada. Assim, parlamentares recém-eleitos por um partido migram para outro sem qualquer constrangimento. Apenas como indicativo, até outubro de 2003, 11% dos deputados encontravam-se filiados a um partido diferente daquele que os elegeu.22 Se considerarmos que apenas quatro partidos conseguiram eleger uma bancada com mais de 10% das cadeiras na Câmara, esse remanejamento tem efeito considerável na correlação de forças no Parlamento e, acima de tudo, no peso relativo dos parceiros da coalizão governamental.23
Assim, o que parecia a emergência de um novo alinhamento governo/oposição - assumindo o poder aqueles que dele estavam alijados - tornou-se uma situação sem contornos nítidos, em que partidos ligados ao governo anterior passaram a integrar a nova coalizão, e antigos adversários ideológicos passaram a compartilhar o mesmo bloco.
A despeito desses problemas no front partidário, o governo Lula construiu sua base de apoio parlamentar com sucesso, e tem conseguido, até o presente, administrá-la satisfatoriamente, garantindo sua governabilidade, o que também ocorreu na gestão de Fernando Henrique Cardoso. Ademais, o fato de os partidos políticos mostrarem-se incapazes de manter seus representantes eleitos não tem suscitado qualquer questionamento quanto a uma possível crise de representação.
Em vista desse quadro podemos questionar até que ponto o fortalecimento do sistema partidário é realmente um fator fundamental na consolidação da democracia brasileira.
Essa indagação é ainda mais pertinente se levarmos em consideração o que tem ocorrido nas democracias consolidadas. A problemática partidária nas chamadas "velhas" democracias tem sido ampla e profundamente examinada na literatura internacional.24 O intenso debate nos últimos trinta ou quarenta anos sobre as novas tendências nas atitudes e nos comportamentos políticos, que criam formas alternativas de participação, tem questionado a centralidade da instituição "partido político". Baixas taxas de mobilização e participação, filiações partidárias em declínio e avaliações negativas das instituições de representação são tendências há muito presentes nas democracias consolidadas. Não obstante a controvérsia a respeito da extensão e do significado de tais transformações, o fato é que elas indicam que os papéis desempenhados pelos partidos deixaram de ter a centralidade de outrora, ou esses papéis foram, de fato, substituídos por outros.
É necessário, então, que reflitamos nesse contexto peculiar as perspectivas da política partidária na democracia brasileira. De fato, no período de experiência democrática pós-regime militar, o Brasil tem enfrentado uma situação paradoxal, qual seja, a de consolidar instituições partidárias que, a despeito do papel fundamental que desempenharam na consolidação das democracias ocidentais, deixaram de ocupar a posição central que ocupavam no sistema político. Talvez Philippe Schmitter (2001) tenha razão quando argumenta, ao se referir à presente experiência político-partidária na América Latina, que a existência de sistemas partidários pouco consolidados não necessariamente resulta em democracias não consolidadas. Por não mais desempenharem as mesmas funções das quais resultaram sua força no passado nas "velhas" democracias, os partidos perderam a centralidade a ponto de não constituírem mais um fator fundamental para a consolidação das novas democracias. Conclui Schmitter:
[...] o que parece mais provável é que as novas democracias, como as várias antigas democracias, terão de sobreviver com muito menos agregação e intermediação que no passado. Seus partidos políticos produzirão muito menos estruturação eleitoral, identificação simbólica, governança partidária e agregação de interesses do que seus predecessores. O que isso implica para a qualidade dessas novas democracias é uma outra questão! (2001, pp. 86-87).
As implicações para a qualidade da democracia, estão, no entanto, no terreno normativo. Embora essa possa ser uma discussão pouco afeita ao debate que hoje domina a ciência política brasileira, não há por quê evitá-lo. Além disso, não se conhece, até o momento, meios alternativos de construção e consolidação de uma forma democrática de convivência política capazes de substituir os mecanismos institucionais que foram os pilares das democracias ocidentais.



NOTAS
1 Nas palavras de Schumpeter, "o método democrático é aquele arranjo institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos adquirem o poder de decidir por meio de uma luta competitiva pelo voto da população" (1976, p. 269).
2 A controvérsia entre democracia política e democracia social é bem conhecida. Essa questão foi bastante debatida durante os primeiros anos de redemocratização no Brasil (ver, em especial, Reis e O'Donnell (1988), e sempre ressurge quando se examina as experiências atuais das chamadas democracias emergentes. Ainda que não seja nossa intenção enveredar para as argumentações e as implicações dessa controvérsia, convém fazer uma observação: é certo que o conceito estrito de democracia, baseado nas regras procedimentais, deixa de considerar a questão da desigualdade social e o conseqüente acesso desigual ao chamado mercado político. Mas é verdade, também, que pensar a democracia em termos abrangentes, como querem os defensores da democracia social, destitui do conceito a propriedade de distinguir um regime democrático de um regime autoritário ou totalitário. Em função dessa característica, Sartori formulou sua definição de democracia como sendo, antes de tudo, "um sistema no qual ninguém pode escolher a si mesmo, investir-se do poder de governar e, portanto, ninguém pode arrogar para si um poder incondicional e ilimitado" (Sartori, 1987, p. 206).
3 Emprego a definição estrutural de partidos, contida no trabalho de Panebianco (1988).
4 Vale lembrar que no Brasil o voto é obrigatório.
5 No sentido de que seus direitos de cidadania não estão plenamente garantidos. Sobre os problemas de cidadania no Brasil, ver Carvalho (2001).
6 A despeito de suas posições radicais e formas de ação questionáveis, a mobilização do MST não só tem mantido o tema da reforma agrária na agenda do governo, mas também instituiu uma forma diferente de relacionamento com o Estado. Citando a excelente análise de Martins sobre o MST e a reforma agrária, o que existe de inovador nas relações entre o MST e o Estado é o fato de este não agir preventivamente para neutralizar as tensões sociais, mas agir em resposta às iniciativas e às pressões da sociedade. Martins conclui: "[esta é] uma mudança politicamente importante que inverteu o processo típico, que aqui no Brasil fez do Estado o criador da sociedade civil" (Martins, 1999, p. 121).
7 Refiro-me à accoutability vertical e não horizontal. A esse respeito ver, em especial, O'Donnell (1998).
8 Em oito Estados são mais de vinte partidos, e, em dois deles, mais de cinqüenta.
9 Discordamos, portanto, da tese defendida por Ames (1995), Mainwaring (1991) e Pereira e Rennó (2001) de que, de um modo geral, os deputados controlam determinada área mediante benefícios clientelistas, uma vez que esses autores se apóiam no pressuposto de que os parlamentares brasileiros, todos eles, seriam representantes de distritos informais, o que nem sempre é o caso.
10 A esse respeito ver, em especial, as importantes observações de Lima Jr. (1993).
11 Esse foi particularmente o caso das eleições realizadas sob o regime militar. Por exemplo, nas eleições de 1970, os percentuais de votos brancos e nulos ultrapassaram o percentual de votos no partido da oposição (cf. Kinzo, 1988).
12 Optamos por considerar como eleitorado a parcela da população maior de 18 anos, já que entre 16 e 18 anos a inscrição e o voto não são obrigatórios. Os números sobre população acima de 18 anos são estimativas para os anos de 1986, 1994, 1998 e 2002, levantadas pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
13 Diferenças marcantes entre regiões e entre Estados indicam que a capacidade de os partidos mobilizarem os eleitores também varia consideravelmente de um Estado para o outro. De qualquer maneira, as taxas de participação eleitoral diminuíram neste período em todo o país.
14 A esse respeito ver, principalmente, Lamounier e Meneguello (1986); Kinzo (1993); Mainwaring (1995, 1999) e Figueiredo e Limogi (1999). Uma boa síntese deste debate encontra-se em Rodrigues (2002).
15 O número efetivo de partidos é calculado por N = 1/ (1-Âpi2 ), onde p é a proporção de votos obtidos por cada partido para a Câmara dos Deputados. Sobre o índice de fragmentação, ver também Rae (1975).
16 Sobre o fenômeno da migração partidária, ver, em especial, Melo (2000).
17 Vale salientar, porém, que há pelo menos dois dispositivos que podem, a longo prazo, ajudar os partidos a fixarem suas siglas junto ao eleitor. Referi-mo-nos, em primeiro lugar, à identificação dos partidos e de seus respectivos candidatos por meio de números usados para votar na urna eletrônica. Como no caso dos partidos os números são permanentes, estes podem fortalecer uma associação entre número e partido, a qual poderia prevalecer sobre a coligação. Em segundo, os partidos têm direito a uma hora de propaganda gratuita no rádio e na televisão para divulgar sua imagem, duas vezes por ano. Nessas ocasiões são destacados os partidos e seus líderes principais.
18 A média do índice Pederson para os países da Europa, entre 1985 e 1996, foi 11,0 (cf. Nicolau, 1998b). Sobre volatilidade eleitoral, ver, em especial, Bartolini e Mair (1990) e Mair (1997).
19 Essa variação é também grande entre diferentes grupos de municípios. De acordo com os dados de Braga (2003), curiosamente, os índices são mais elevados nas categorias de cidades média e pequena do que nas cidades grandes e capitais de Estado.
20 Parte da discussão exposta nesta sessão foi apresentada na mesa redonda "Eleições, partidos e governos no Cone Sul: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai", do XXVII Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 21-25 out. 2003.
21 Isso não significa que anteriormente não tenha havido alternância no poder. Na verdade, alternância e incerteza eleitoral são traços característicos do processo de democratização no Brasil, pois tanto o primeiro como o segundo presidente eleito diretamente (Collor e Fernando Henrique Cardoso) não são provenientes de partidos que dominaram inicialmente o jogo político da Nova República, embora houvesse, de alguma forma, uma linha de continuidade - no caso de Collor, seus vínculos políticos com a oligarquia nordestina; no caso de FHC, seus vínculos políticos originários do MDB/PMDB. A diferença da eleição de 2002 foi o fato de a alternância ter se dado com um partido que até então estivera alijado totalmente do poder nacional, embora tivesse se apresentado como principal competidor em todos os embates anteriores.
22 De acordo com a distribuição das bancadas partidárias fornecida pela Câmara dos Deputados em 15/10/2003.
23 Note-se que, menos de um ano após a eleição, o PTB teve sua bancada engrossada em 100 % (de 26 passou para 53 deputados). O PL aumentou de 26 para 42 deputados; o PFL diminuiu sua bancada de 84 para 67 e o PSDB, de 71 para 51.
24 A esse respeito a bibliografia é bastante ampla. Entre os trabalhos mais importantes, destacam-se Kirchheimer (1966), Lawson e Merkl (1988), Katz e Mair (1994), Mair (1997), Wattenberg (1998), Broughton e Donovan (1999), Dalton et al. (2000) e Diamond e Gunther (2001).

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Artigo recebido em março/2003 Aprovado em junho/2003


Maria D'Alva Kinzo, doutora em ciência política pela University of Oxford, é professora associada do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). É autora de uma série de trabalhos publicados no Brasil e no exterior sobre a questão partidária e eleitoral.
* Este artigo é uma versão modificada do trabalho "Parties and elections: Brazil's democratic experience since 1985", em Kinzo e Dunkerley (2003), que contou com o apoio do CNPq e da Fapesp.

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A democratização Brasileira: um balanço do processo político desde a transição

São Paulo em Perspectiva
ISSN 0102-8839 versão impressa
São Paulo Perspec. v.15 n.4 São Paulo out./dez. 2001
MARIA D'ALVA G. KINZO
Professora do Departamento de Ciência Política da USP

Resumo:
O objetivo do artigo é discutir a presente experiência democrática através de uma análise do caminho percorrido pelo processo de democratização brasileiro. A visão bastante crítica sobre tal experiência, presente no debate político atual, tem negligenciado o impacto que constrangimentos de várias naturezas tiveram sobre o processo de democratização. Uma análise retrospectiva que recupere as marchas e contramarchas da longa transição democrática ajuda a compreender alguns dos dilemas da atual conjuntura.
Palavras-chave: transição democrática; democratização brasileira; partidos políticos.
A presente conjuntura, marcada como tem sido por um suceder de crises políticas emaranhadas em outras de natureza econômica e social, tem levado muitos à percepção de que, se não chegamos a andar para trás, avançamos muito pouco na direção do aprimoramento democrático do sistema político brasileiro. A ineficácia dos governos em tratar de solucionar os problemas econômicos e sociais que afetam a porção majoritária da população brasileira, a onda de denúncias de práticas de corrupção em órgãos públicos, envolvendo lideranças políticas importantes, e a sensação de insegurança resultante não apenas da violência urbana, mas também de instabilidade econômica de várias naturezas, são elementos que se combinam para formar o pessimismo geral que se tem alastrado, em relação aos frutos desses anos de democracia no país. Para uma população que, em sua maioria, tem mostrado pouco apego aos valores democráticos ¾ como várias pesquisas de opinião têm constatado ¾, esses fatores aludidos acabam ocultando os avanços democráticos conquistados nos últimos 16 anos. Por excesso de foco no presente, esquece-se do passado recente, ou trata-se de vê-lo desprovido de seus espinhos, e julga-se o presente sob a perspectiva de um modelo idealizado do sistema político. É em função desse desencanto frente ao quadro político atual que parece oportuno rememorar o caminho percorrido pela democratização brasileira para, a partir daí, avaliar o presente regime democrático. Não se trata aqui de contrastar o clima geral de pessimismo com um cenário oposto, de tonalidades vivas, do que tem sido conquistado em nossa experiência democrática. Trata-se, sim, de dar a devida ênfase aos aspectos tanto negativos como positivos à luz dos constrangimentos antepostos ao processo de liberalização política. Ou seja, procura-se valer do tão aludido conceito de path dependence para salientar a noção de que as opções políticas postas em uma determinada conjuntura resultaram de decisões precedentes ¾, escolhas feitas pelos atores relevantes ¾, as quais influenciaram o curso do processo político, a ponto de limitar o leque de opções numa conjuntura futura, e portanto os cursos de ação possíveis. Sob tal enfoque, a discussão sobre o cenário democrático atual requer, primeiramente, uma referência ao ponto de partida da democratização ¾ isto é, o regime militar-autoritário que vigorou de 1964 a 1985 ¾ bem como à dinâmica política que orientou a liberalização deste regime e sua transição para a democracia. Fazer uma retrospectiva deste processo será o objetivo deste artigo, que não tem qualquer pretensão de oferecer uma interpretação original sobre esta temática. A intenção é apenas de trazer ao presente um pouco de nosso passado recente, que tem sido negligenciado na maioria das análises que dão suporte ao debate político atual.

GOVERNO MILITAR-AUTORITÁRIO
Como já foi amplamente discutido na literatura, o caso brasileiro, comparado a outras experiências autoritárias vivenciadas na mesma época em outros países da América Latina, assentou-se sob alicerces singulares que merecem referência quando tratamos de analisar a influência de fatores de longo prazo no processo de democratização.1 Estas bases são de duas naturezas: uma tem a ver com as instituições políticas sob as quais o governo militar operava; e a outra, no domínio econômico, refere-se ao modelo de desenvolvimento seguido e suas conseqüências. No âmbito da política, há que se lembrar a emergência de uma situação bastante paradoxal. Por um lado, tratava-se de um regime tipicamente militar no sentido de que as Forças Armadas, enquanto instituição, passavam (após o golpe civil-militar que depôs João Goulart em 1964) a dirigir o país. Tal situação necessariamente levaria a que a instituição militar passasse a ser também uma arena de disputa pelo poder político, o que teria conseqüências não apenas na coesão interna da organização, mas também em toda a dinâmica política. Conflitos entre oficiais moderados e radicais permearam os 21 anos de governo militar gerando freqüente instabilidade política. Por outro lado, tratava-se de uma situação que manteve em funcionamento os mecanismos e os procedimentos de uma democracia representativa: o Congresso e o Judiciário continuaram em funcionamento, a despeito de terem seus poderes drasticamente reduzidos e de vários de seus membros serem expurgados; manteve-se a alternância na presidência da República; permaneceram as eleições periódicas, embora mantidas sob controles de várias naturezas; e os partidos políticos continuaram em funcionamento, apesar de a atividade partidária ser drasticamente limitada. Em síntese, era um arranjo que combinava traços característicos de um regime militar autoritário com outros típicos de um regime democrático. Este arranjo peculiar foi o responsável, em grande medida, por sucessivas crises políticas que acompanharam o regime, fazendo-o se caracterizar por fases alternadas de repressão e liberalização permeadas por crises políticas resultantes de conflitos dentro do exército e entre estes grupos e a oposição democrática (Kinzo, 1988). A instabilidade que acompanhou o governo dos militares no Brasil, indicativo da dificuldade de institucionalização do regime, levou Linz (1973) a caracterizar o autoritarismo brasileiro como uma situação em vez de um regime propriamente dito. Regime ou situação, o fato é que o estabelecimento desse arranjo político híbrido teve grande impacto na maneira como se deu a transição brasileira. Porém, antes de analisar o processo de transição, outra característica no modelo brasileiro, desta vez no âmbito econômico, deve ser apontada.
Em contraste com o que aconteceu, por exemplo, no Chile, onde o governo militar provocou uma mudança significativa no modelo econômico, no Brasil os militares não inovaram em matéria de política econômica. Com exceção dos três primeiros anos de governo militar, quando todos os esforços concentraram-se no programa de estabilização para conter as altas taxas de inflação, a política econômica, durante o período militar, seguiu basicamente o mesmo modelo vigente desde o governo Vargas. O chamado "milagre brasileiro" do período 1967-73 teve como sustentáculo, por um lado, os resultados obtidos pela política de estabilização de 1964-67 e, por outro, uma política de desenvolvimento que consolidou e intensificou o modelo de substituição de importações que reservava ao Estado um papel empreendedor ainda mais importante. Por volta de 1974, a despeito dos sinais de que o milagre havia se desfeito ¾ manifestos pelo impacto que a crise mundial do petróleo exerceu no Brasil ¾, o mesmo caminho continuou a ser trilhado. Uma ambiciosa política de substituição de importações de bens de capital e matérias-primas, sustentada por investimentos do setor público e por empréstimos estrangeiros, foi a estratégia seguida (Cardoso, 1983). Certamente, esta estratégia teve êxito ao garantir altas taxas de investimento e ao fazer da experiência brasileira de regime militar-autoritário um caso de desempenho econômico bem-sucedido. Porém, foi também responsável por sérios desequilíbrios, e os problemas econômicos que haviam provocado a intervenção militar em 1964 ¾ inflação alta e estagnação econômica ¾ ressurgiram com ainda mais intensidade, permanecendo como pano de fundo do processo de transição política.2
A LONGA TRANSIÇÃO
Não foi apenas o regime militar que, no Brasil, teve traços peculiares. Também singular foi seu processo de democratização.3 Tratou-se do caso mais longo de transição democrática: um processo lento e gradual de liberalização, em que se transcorreram 11 anos para que os civis retomassem o poder e outros cinco anos para que o presidente da República fosse eleito por voto popular. Para propósito analítico, pode-se dividir este processo em três fases. A primeira, de 1974 a 1982, é o período em que a dinâmica política da transição estava sob total controle dos militares, mais parecendo uma tentativa de reforma do regime do que os primeiros passos de uma transição democrática de fato. A segunda fase, de 1982 a 1985, é também caracterizada pelo domínio militar, mas outros atores ¾ civis ¾ passam a ter um papel importante no processo político. Na terceira fase, de 1985 a 1989, os militares deixam de deter o papel principal (apesar de manterem algum poder de veto), sendo substituídos pelos políticos civis, havendo também a participação dos setores organizados da sociedade civil. Como estas fases possuem diferentes componentes e dinâmicas resultantes do jogo dos principais atores políticos, uma análise com algum detalhe faz-se necessária.
Primeira Fase: 1974 a 1982
A ascensão do general Geisel na presidência da República, em 1974, e o anúncio de seu projeto de distensão "gradual e segura" marcaram o início de um novo período do governo militar-autoritário, uma fase que passaria a ser o ponto de partida do processo de democratização no Brasil. A revogação parcial da censura à imprensa e os sinais, por parte do governo, de valorização das eleições legislativas daquele ano (1974) indicavam que as declarações do novo presidente eram algo mais do que promessas de retorno à democracia tão freqüentemente aludidas por seus antecessores na presidência.4 O modo como este projeto de liberalização foi conduzido e a dinâmica do processo político que acabou por levar à democracia foram, no entanto, algo extremamente complicado. Esta fase da transição foi totalmente conduzida pelo governo militar, que definiu tanto seu ritmo como seu escopo. Entretanto, vários fatores influenciaram o curso deste processo.
O primeiro fator foram as eleições. Os sinais de liberalização que permitiram a realização das eleições de 1974 em condições mais livres resultaram num surpreendente desempenho eleitoral do partido de oposição (MDB). Com isso, ficava evidente que, a despeito dos excelentes resultados econômicos conseguidos sob regime militar, este carecia de apoio popular. Também ficava claro que o inofensivo MDB, criado para ser parceiro da Arena no bipartidarismo de fachada instituído pelo regime, havia se tornado um instrumento efetivo de oposição democrática, a ser utilizado não apenas na arena eleitoral, mas também no processo político mais amplo, de modo que, se a política de liberalização deveria ser mantida sob controle do governo, esta tinha que neutralizar tanto as eleições como o MDB (Lamounier, 1988 e Kinzo, 1988).
O segundo fator era a instituição militar e seu conflito interno. Na realidade, uma das principais razões que explicam a iniciativa do governo de iniciar a liberalização é a necessidade de os militares se retirarem da vida política a fim de preservar a própria instituição.5 Porém, a iniciativa de Geisel intensificaria o conflito dentro das Forças Armadas, tornando mais agressiva a reação da chamada linha-dura contra a abertura do regime. A intensificação na repressão policial, empreendida pela linha-dura no comando militar de São Paulo em 1975-76, foi claramente uma reação à política de liberalização de Geisel. Tratava-se, portanto, de neutralizar as pressões internas dos militares contra a distensão, de modo que eles não minassem o comando político de Geisel e tampouco interferissem, mais tarde, na questão crucial que seria a sucessão presidencial.
Geisel foi bem-sucedido ao lidar com ambos os problemas, jogando nas duas direções ao mesmo tempo: de um lado, puniu com a cassação do mandato alguns dos parlamentares de postura oposicionista mais aguerrida, alterou leis eleitorais e procedimentos legislativos para controlar a oposição, apaziguando assim os militares da linha-dura, ao mesmo tempo em que reafirmava seu controle sobre a oposição democrática; de outro lado, reagiu à radicalização dos militares da linha dura, demitindo o comandante das Forças Armadas de São Paulo após a morte por tortura de um jornalista e de um trabalhador metalúrgico, nas dependências dos órgãos de repressão. Reafirmando assim seu comando absoluto sobre o processo político, Geisel conseguiu não apenas dar continuidade à política de distensão, como também controlar o processo sucessório.
Deste modo, ao final de 1978, reformas políticas de cunho liberalizante foram implementadas de acordo com o caráter gradual e seguro da política de distensão. Um novo presidente, general João Figueiredo, encarregado de dar continuidade à transição política nos seis anos seguintes, havia sido eleito estritamente de acordo com a determinação de Geisel de impor o nome por ele escolhido.
Se Geisel foi extremamente habilidoso ao tratar com potenciais opositores a seus objetivos políticos, não teve a mesma habilidade para lidar com um terceiro fator que influenciou o processo de liberalização política: o problema econômico. Várias eram as evidências de que o "milagre econômico" brasileiro estava se esgotando.6 O problema econômico era certamente um elemento crucial a ser levado em conta se os militares quisessem retornar aos quartéis com segurança. Ao que parece, considerações de natureza política foram fundamentais no modo como Geisel decidiu lidar com a primeira crise mundial de petróleo e suas conseqüências recessivas. Em vez de optar pela contração econômica, como aconteceu na maioria dos países afetados pela crise, o governo Geisel implementou uma política de expansão econômica através do aprofundamento do modelo de substituição de importações, em detrimento dos conseqüentes desequilíbrios internos e externos. Assim, um ambicioso programa de substituição de importações nos setores de matéria-prima e bens de capital foi implantado, envolvendo investimento estatal significativo nos setores de energia e infra-estrutura às custas de grandes empréstimos estrangeiros. O curso desta política não foi revertida durante os primeiros anos da administração Figueiredo, o que significava que, enquanto a economia expandia, as contas externas e a inflação continuavam a crescer. O agravamento dos problemas externos obrigou a equipe econômica de Figueiredo a mudar radicalmente a política econômica. Uma tentativa de reajuste econômico foi pela primeira vez implementada, gerando uma queda brusca na atividade econômica e aumentando o desemprego. Outro choque externo em 1982 agravou ainda mais o cenário econômico extremamente vulnerável às mudanças no ambiente externo (Lamounier e Moura, 1986). A partir daí a crise econômica acompanharia passo a passo a transição política e os governos democráticos que lhe seguiram.
Em suma, os três fatores apontados ¾ o processo eleitoral, o conflito interno dentro das forças armadas e a emergência de sérios problemas econômicos ¾ concorreram para fortalecer aquele padrão controlado e gradual que caracterizou a transição democrática no Brasil. Iniciada em 1974, a liberalização somente teve um avanço significativo em 1978, quando finalmente foi revogado o draconiano Ato Institucional n.5. Em 1979, já na administração Figueiredo, o Congresso aprovou a anistia, que, embora limitada, permitiu a reintegração à vida pública de políticos exilados e de ativistas de esquerda punidos pelo regime militar. Uma nova lei partidária pôs fim ao bipartidarismo compulsório criado em 1966, levando à criação de novos partidos.
A reforma partidária representou importante avanço no processo de liberalização, mas foi também uma estratégia do governo para dividir a oposição e assim manter a transição sob controle. Entre os fatores a serem controlados estava a sucessão presidencial de 1985, que deveria possibilitar o restabelecimento do governo civil. Tratava-se de garantir não apenas que o próximo presidente fosse eleito via Colégio Eleitoral (e não por sufrágio universal), mas também a maioria governista no Colégio Eleitoral. Assim, alteraram-se as regras eleitorais e mesmo a composição do Colégio Eleitoral, de forma a reduzir as chances de a oposição obter a maioria.

Segunda Fase: 1982 a 1985
Apesar dos percalços, o processo de liberalização teve continuidade, iniciando uma nova fase com as eleições de 1982. Novos partidos políticos haviam sido criados e participado das eleições. Políticos que nos anos 60 tinham perdido seus direitos voltaram à vida pública e, pela primeira vez desde 1965, governadores estaduais foram eleitos pelo voto popular. Naquelas eleições, o governo militar teve importantes ganhos, assegurando sua maioria no Colégio Eleitoral que elegeria o próximo presidente. Porém, também a oposição obteve avanços significativos, particularmente o PMDB, que elegeu os governadores e senadores de nove Estados e conquistou 200 cadeiras na Câmara dos Deputados. Assim, apesar de os militares continuarem em sua posição inquestionável de jogador principal, outros atores passariam, a partir de 1982, a influenciar o jogo, atrapalhando os planos do governo de manter o controle total sobre o processo político.
O episódio mais importante foi a sucessão presidencial, a qual deve ser analisada como uma peça em dois atos. O primeiro seria a tentativa do PMDB, em 1984, de mudar as regras das eleições presidenciais, propondo uma emenda constitucional que restabelecesse o voto direto. Com o objetivo de obter apoio popular para a aprovação da emenda, os partidos de oposição partiram para a mobilização da população. O resultado da campanha das "Diretas Já" foi uma impressionante mobilização popular com milhões de pessoas participando de comícios em todo o país. Observando-se aquela mobilização, a impressão era de que a sociedade civil ¾ que havia mostrado sua existência nos movimentos sociais surgidos em 1978 ¾ tinha decididamente despertado e, finalmente, alteraria o curso da liberalização. Essa foi, na verdade, a percepção de alguns setores da oposição democrática, mas a emenda foi derrotada no Congresso, uma vez que a pressão popular não foi eficaz o suficiente para fazer frente a todas as manobras usadas pelo governo para evitar sua aprovação.
O desfecho deste episódio colocou mais uma vez em evidência que os militares estavam determinados a manter, a qualquer custo, o controle sobre o processo sucessório presidencial. Ficou também evidente que, apesar do apoio da mobilização popular, a oposição era numericamente muito fraca no Congresso para ser capaz de desafiar o regime se fosse para continuar jogando dentro das regras estabelecidas. À oposição restava duas saídas: buscar simpatizantes dissidentes dentro do governo; ou romper as regras do jogo através da mobilização da sociedade civil. A decisão de qual direção seguir dependia da posição e força relativa de cada um dos diferentes grupos da oposição, ou seja, o PMDB com suas divisões internas, o PT, o PDT e o PTB. Do PTB se esperava pouco de oposicionismo, dado que havia votado contra a emenda das diretas em troca de cargos no governo. O PDT, por sua vez, era imprevisível, uma vez que seu líder, Leonel Brizola, chegara a propor a prorrogação do mandato presidencial de Figueiredo em troca de eleições diretas para seu sucessor. Deste modo, restaram apenas dois atores principais: a favor da primeira alternativa estava o PMDB, mais especificamente sua ala moderada, que era a mais numerosa e liderava o partido; a favor da segunda estava o PT, seguido por um pequeno grupo de parlamentares do PMDB que mantinham relações mais próximas com os movimentos sociais.
A decisão do PMDB de optar pela primeira alternativa ¾ isto é, tentar influenciar o processo sucessório jogando conforme as regras estabelecidas ¾ foi o segundo ato da sucessão presidencial. Sem dúvida era o produto da posição moderada dos líderes do partido, para quem uma solução negociada evitaria a imprevisibilidade e os riscos de uma mobilização popular e, conseqüentemente, a reação por parte dos militares da linha-dura contra qualquer tentativa de mudança radical.7 De qualquer modo, os líderes do PMDB estavam dispostos a participar do processo sucessório mesmo que em condições limitadas. De fato, enquanto o PMDB trabalhava pela campanha pró-diretas, a ala moderada do partido já articulava uma estratégia alternativa caso a emenda não passasse no Congresso. A proposta era a candidatura Tancredo Neves para concorrer pela oposição na eleição pelo Colégio Eleitoral, alternativa que ganhou força tão logo foi derrotada a Emenda das Diretas. Entretanto, viabilizar a candidatura de Tancredo Neves não era uma tarefa simples, uma vez que, para seu êxito, era necessário conseguir o apoio do outro lado, ou seja, de parlamentares do partido do governo. A oportunidade surgiu quando alguns políticos do PDS recusaram-se a apoiar o candidato do governo nomeado na convenção do partido. Negociações entre o PMDB e dissidentes do partido do governo (que depois criariam o PFL) levaram à formação da Aliança Democrática, cujo objetivo era juntar forças para derrotar o candidato do governo. Em troca do apoio dos dissidentes à candidatura Tancredo Neves, o senador José Sarney foi escolhido para ser candidato a vice-presidente na chapa da oposição.
A estratégia adotada pela oposição moderada certamente logrou êxito, pois o governo militar foi impossibilitado de impor seu candidato, mas teve duas conseqüências importantes: possibilitou que os dissidentes do regime autoritário desempenhassem um papel importante no novo regime ¾ na verdade passariam a ser parceiros de todos os governos que se seguiram; e abriu um amplo espaço para as críticas dos setores mais radicais da oposição, mais especificamente o PT, contrários à participação no processo indireto da eleição presidencial. Sob o argumento de que o Colégio Eleitoral era ilegítimo e não representativo, os parlamentares do PT foram orientados a não participar da escolha do sucessor de Figueiredo. Como o número de votos do PT no Colégio Eleitoral não era decisivo, certamente era mais lucrativo posicionar-se contra a transição negociada, diferenciando-se assim da oposição moderada e afirmando sua própria identidade mais à esquerda no sistema político que emergia. O problema, entretanto, estava no fato de que, ao denunciar as limitações da "transição negociada", esta estratégia contribuiu para que a nova ordem instaurada em 1985 desse seus primeiros passos com sua legitimidade já questionada.
Terceira Fase: 1985 a 1990
A segunda fase da transição findou-se com a eleição de Tancredo Neves e José Sarney, em 15 de janeiro de 1985. Porém, a inauguração de seu governo ¾ que deu início à terceira fase da transição ¾ sofreria ainda o efeito do acaso: a doença repentina de Tancredo, seguida de sua morte, levando à posse do vice, José Sarney, na presidência da República. Como conseqüência, além de a Nova República ¾ como passou a ser chamado o restabelecimento do governo civil ¾ ter resultado de um acordo entre setores moderados da oposição e dissidentes do governo, sem o respaldo do voto popular, com a morte de Tancredo um outro complicador iria se antepor à democratização. Significava que a Nova República nascia sob circunstâncias bastante frágeis, especialmente para um presidente que teria de enfrentar uma crise econômica e social que se avolumava. Assim, Sarney tomou posse sem um plano de governo propriamente dito e com um sério déficit em legitimidade: uma figura política marcada por anos de vínculos com os militares, que assumia o poder sem o respaldo das urnas e que não era das fileiras do partido que esperava desta vez governar ¾ o PMDB.8 Estes fatores dificultaram sua administração, que ficou vulnerável a todos os tipos de pressão ¾ desde as forças políticas heterogêneas que compunham seu governo (cada uma tentando aumentar sua influência) até os partidos de oposição e os setores organizados da sociedade civil demandando pronta democratização em todos os sentidos do termo.
A despeito destes problemas, a democratização brasileira seguiu seu curso neste novo contexto político. No que tange à questão social e econômica, o caminho percorrido foi de pedras e espinhos no período que se seguiu: entre 1986 e 1994 o país mudou quatro vezes de moeda e teve seis experimentos em estabilização econômica, apenas o último ¾ o Plano Real ¾ tendo sido bem-sucedido. A sucessão de fracassos não apenas agravou a crise econômica e social, mas também comprometeu a capacidade do Estado de governar, tornando o problema da governabilidade uma realidade permanente.
No que tange à esfera política, a fase inaugurada em 1985 foi de intensificação da democratização. Os sinais mais importantes foram a instituição de condições livres de participação e contestação (com a revogação de todas as medidas que limitavam o direito de voto e de organização política) e, acima de tudo, a refundação da estrutura constitucional brasileira com a promulgação de uma nova Constituição em 1988.
A elaboração da Constituição de 1988, vale lembrar, foi ilustrativa da complexidade que cercou o processo de democratização brasileiro. Do início ao fim, o processo envolveu um embate entre os mais variados grupos, cada um tentando aumentar ou restringir os limites do arranjo social, econômico e político a ser estabelecido. Na verdade, este clima de batalha verbal e de manobras nos bastidores era, em grande medida, um efeito colateral do curso da transição. Uma refundação que se apoiava num acordo negociado seria pressionada em duas direções: de um lado, pelas forças políticas do ancién regime tentando assegurar seu espaço neste novo cenário; e de outro, pelos setores de esquerda que, embora minoritários, adquiriram importante papel no processo constituinte. A pecha de ser uma transição negociada acabou fazendo com que seus condutores ¾ líderes políticos moderados mas democratas ¾ se tornassem mais vulneráveis às críticas quanto às limitações do novo regime e, por conseguinte, mais sensíveis às pressões das forças políticas que clamavam pelo aprofundamento da democratização. Em função deste fator, é provável que a estrutura constitucional tenha se tornado muito mais democrática do que se esperaria das circunstâncias de um processo de transição tão gradual e controlado como foi o brasileiro, pois, a despeito de a Assembléia Constituinte ter sido amplamente criticada na época por sua natureza congressual, foi certamente a experiência mais democrática na história constitucional brasileira. No que se refere aos procedimentos que nortearam sua elaboração, vários pontos devem ser assinalados:
- os trabalhos foram organizados sob uma estrutura bastante descentralizada, de modo que todos os constituintes tivessem garantida sua participação nas diversas fases do processo;
- ao invés de um trabalho a portas fechadas, houve ampla abertura para a sociedade, uma vez que foi um processo não só intensamente coberto, a cada passo, pela imprensa, mas que também contou com a participação dos grupos sociais organizados, seja diretamente, através de demandas e sugestões na fase de trabalho das subcomissões, seja indiretamente, por meio de pressão para que suas propostas fossem aprovadas pelo plenário;
- dado que as forças políticas encontravam-se fragmentadas e os partidos escassamente organizados, a Constituinte se tornou bastante permeável às pressões dos interesses de grupo, sendo que a decisão da maioria era precedida de longas negociações a cerca de praticamente cada item específico.9
No que se refere ao produto, a despeito de várias imperfeições, a Constituição representou um avanço significativo. Todos os mecanismos de uma democracia representativa foram garantidos, mesmo aqueles associados à democracia direta, como o plebiscito, o referendo e o direito da população de proposição de projeto de lei. Além disso, desconcentrou-se o poder em conseqüência do fortalecimento do poder do Legislativo, do Judiciário e dos níveis subnacionais de governo, bem como da total liberdade de organização partidária. Do âmbito social, a Carta de 1988 significou importantes avanços nos direitos trabalhistas, bem como nos padrões de proteção social sob um modelo mais igualitário e universalista (Castro, 1993). A Constituição também foi inovadora em relação às minorias, com a introdução de penalidades rigorosas para discriminações contra mulheres e negros. No entanto, dado o contexto social e político no qual se processou a reconstitucionalização do país, o novo estava fadado a conviver com o velho. Este foi o caso do secular problema agrário, que permaneceu quase intocado, e dos militares, que mantiveram sua prerrogativa de poder intervir, caso solicitado por um dos três poderes, na eventualidade de uma grave crise política. O legado da era Vargas foi também reafirmado pela Constituição, na inclinação nacionalista e estatista de algumas de suas cláusulas econômicas e na preservação de muitos dos traços característicos da estrutura corporativa de representação de interesses.10
A eleição de 1989 ¾ quando 72 milhões de eleitores foram às urnas para eleger o presidente da República ¾ finalmente encerrou a terceira e última fase da transição brasileira. A posse de Collor marcava, simbolicamente, o final de um longo e complicado processo de transição democrática. Porém, os desdobramentos políticos que se seguiram demonstraram que a democracia emergente teve ainda que passar por vários testes antes de chegar na presente situação. Entre os fatos marcantes que tornaram o período uma sucessão de crises econômicas e políticas, alguns merecem destaque:
- as drásticas medidas econômicas do Plano Collor decretadas no dia seguinte à sua posse ¾ políticas que, apesar de sua radicalidade em interferir arbitrariamente na poupança popular e investimentos financeiros e em promover ampla liberalização comercial, logo se mostraram ineficazes para conter a crise, levando à rápida erosão do apoio popular do primeiro presidente eleito pelo voto direto;
- impeachment do presidente Collor em 1992, resultante de sérias denúncias de corrupção, seguidas por uma expressiva mobilização popular e da ação decisiva do Congresso Nacional em solucionar a crise política;
- ascensão à presidência do vice, Itamar Franco, cuja liderança vacilante contribuiu ainda mais para agravar a incerteza política e econômica no país;
- realização de um plebiscito, em 1993, para definir se o país continuava presidencialista ou adotava o parlamentarismo como sistema de governo;
- tentativa de revisão constitucional em 1994, que se arrastou por meses e praticamente nada alterou, embora a necessidade de algumas mudanças constitucionais fosse demanda de muitos setores políticos;
- a famosa CPI do Orçamento, que pôs a público a deslavada prática de corrupção de alguns membros da Comissão de Orçamento do Congresso;
- implementação, em 1993-94, do Plano Real ¾ um arrojado plano de estabilização econômica que finalmente conseguiu driblar a inflação;
- eleição presidencial de 1994, que acabou se transformando num plebiscito sobre a política econômica do governo, elegendo assim Fernando Henrique Cardoso ¾ arquiteto do Plano Real;
- sucessão de crises econômicas no mundo afora ¾ México em 1995, Ásia em 1997, Rússia em 1998 ¾ cujo impacto no Brasil quase enterrou os esforços de estabilização do Pla-no Real e a popularidade de Fernando Henrique Cardoso;
- realização, em 1998, sob o impacto da crise russa, da terceira eleição presidencial, cujo desfecho foi a recondução de Fernando Henrique Cardoso para um segundo mandato presidencial.
Todos estes fatos foram desafios enfrentados por um regime ainda em processo de consolidação. Ao longo desses anos, eleições dos mais diferentes tipos e para os mais variados cargos continuaram a ocorrer com regularidade e com razoável grau de incerteza quanto aos resultados, indicando a vitalidade da democracia no que ela contém de controle popular sobre o exercício da representação política. Por outro lado, montanhas de escândalos de corrupção têm recheado as páginas dos jornais; denúncias de violência e atentado aos direitos da cidadania têm sido noticiadas diariamente; erupções de protestos e mobilizações de diferentes naturezas têm ocorrido em vários pontos do país. Eventos como estes tornaram-se parte do dia-a-dia da vida democrática brasileira, que, a despeito desses problemas, obteve conquistas significativas.
DEMOCRACIA ENTRE CONQUISTAS E LIMITAÇÕES
O retrospecto do processo de democratização brasileiro aqui realizado tratou de percorrer o curso da transição em cada um de seus momentos fundamentais, avaliando esta experiência de forma a melhor entender os avanços e as limitações do presente sistema político. Como de resto tem ocorrido em outros momentos de nossa história, a democratização que se iniciou com a restauração do governo civil não foi o produto de uma ruptura com a antiga ordem. Isto implica que a reconstrução do sistema político deu-se através de acomodações e do entrelaçamento de práticas e estruturas novas e antigas, combinação esta que estruturou as opções e estratégias seguidas pelos principais atores do processo político. Salientar este ponto não significa desconsiderar os avanços democráticos conquistados, os quais são, em grande medida, o produto da dinâmica política introduzida pelo próprio processo de democratização.
Observando o sistema político no Brasil de hoje, não há como negar que se trata de um regime com claros contornos de uma democracia. Ao serem tomadas como referência as duas dimensões da poliarquia caracterizadas por Dahl (1971), o país ampliou significativamente as condições de contestação pública e participação política. Porém, tampouco há como negar que existam problemas no que se refere tanto à "qualidade" da contestação pública e da participação do cidadão quanto ao funcionamento efetivo do processo decisório democrático.
Vale lembrar, em primeiro lugar, a questão social, isto é, o problema da pobreza e da desigualdade. Não resta a menor dúvida de que extremas desigualdades sociais são um fator que constrange a consolidação da democracia, especialmente no que se refere è efetiva participação política de todos os cidadãos. Os elevados índices de pobreza e de concentração de renda no Brasil são um legado do passado que os governos pós-regime militar não tornaram menos agudo,11 a despeito de avanços na área da educação. Em segundo lugar, há problemas referentes à representação política e ao processo de decisão democrático. A estrutura institucional brasileira possui vários aspectos que dificultam o funcionamento do sistema democrático-representativo.12 Entre eles, vale destacar a tão debatida questão partidária, que se resume na existência de um sistema partidário que é, por um lado, altamente fragmentado e, por outro, pouco nítido no que tange às opções oferecidas ao eleitor no processo eleitoral.13 Trata-se de um contexto político que dificulta enormemente a capacidade do eleitor de fixar as legendas, distinguir quem é quem na competição e criar identidades partidárias.14 Quanto à questão da representação política, este é um contexto que possibilita a eleição de representantes pouco comprometidos com seu partido e com os eleitores que os elegeram, mesmo porque muitos se elegeram com os votos excedentes dos candidatos mais votados, os quais podem ser de um outro partido pertencente à coligação eleitoral.
Efeito também da alta fragmentação é a impossibilidade de que um presidente saia das urnas com um apoio partidário-parlamentar majoritário, o que o obriga a fazer um governo de coalizão de vários partidos. Isto significa que, a fim de manter uma base parlamentar de apoio a suas políticas, o chefe do governo terá de compor seu ministério com diferentes forças partidárias, por vezes heterogêneas, fator que certamente dificulta uma ação governamental coordenada, especialmente em relação a políticas públicas cuja implementação depende da ação de vários ministérios. Além disso, na medida em que o Executivo tem de contar com o apoio de vários partidos para ver seus projetos aprovados no Congresso, o processo de negociação é complexo e demorado, ou seja, envolve uma dinâmica difícil entre o presidente e os partidos da coalizão, muitas vezes baseada na ameaça e na retaliação mútua.
A tese de que a fragmentação partidária tem impacto negativo no processo decisório é contestada por Figueiredo e Limongi (1994) com base em análise das votações na Câmara dos Deputados. Para estes autores, a existência de um sistema partidário fragmentado não teria conseqüências, uma vez que a fragmentação partidária é mais nominal do que real, dada a ocorrência de uma reaglutinação nas posições dos partidos. As evidências desse trabalho ¾ baseado em análise acurada das votações de projetos tramitados na Câmara dos Deputados ¾ demonstram que os partidos de direita (grandes e pequenos) votam similarmente e os de esquerda fazem o mesmo, sendo que o grau de coesão é também alto. De fato, pelo que se observou sobre os partidos na Constituinte e sobre o posicionamento dos deputados estaduais da legislatura 1987-91, não há diferenças contrastantes entre os vários partidos de direita ou entre os vários de esquerda, havendo sim uma gradação de mais ou menos direita e mais ou menos esquerda (Kinzo, 1990 e 1993). No entanto, há que se fazer duas ressalvas. Em primeiro lugar, se é verdade que os partidos de direita assumem posições similares, ou não se diferenciam em questões essenciais, e se o mesmo ocorre com os de centro e os de esquerda, qual a relevância de existirem tantos partidos que ocupam semelhantes posições no espectro político-ideológico, mesmo porque também nas eleições eles se apresentam em aliança? A segunda ressalva tem a ver com as conseqüências da fragmentação sobre o processo decisório propriamente dito: a despeito de muitos dos partidos serem parecidos e, quando examinamos os resultados das votações, podermos ver menos partidos do que os nominais, o fato é que, na hora de negociar, eles o fazem como atores distintos, de modo que a situação continua sendo a de um jogo de poder fragmentado.
Em suma, o que predomina é uma situação em que o processo de decisão é dificultado pela existência de um sistema de múltiplos vetos, fazendo com que qualquer negociação envolva muitos atores e seja portanto árdua e demorada, situação muito mais propícia à manutenção do status quo do que à mudança de políticas.15 Em tal contexto, qualquer que seja o perfil do presidente e de seu partido, a probabilidade de reforma efetiva em políticas públicas é limitada. Na presente experiência de governo democrático pós-85, o chamado presidencialismo de coalizão (Abranches, 1988) tem funcionado às custas do recurso, por parte do Executivo, seja de mecanismos de decisão concentradores de poder, como é o caso das Medidas Provisórias,16 seja de recursos clientelísticos para negociar apoio parlamentar em bases às vezes até individuais. A permanência desta situação, que reproduz à enésima potência o sistema de contrapesos do modelo madsoniano, pode ser entendida como fruto da acomodação possível no contexto de um padrão de desenvolvimento político como o descrito anteriormente. Isto não retira seu caráter problemático, especialmente num país em que a agenda política é carregada de problemas estruturais a serem equacionados.
NOTAS
E-mail da autora: mdkinzo@usp.br
1. Para uma revisão geral da experiência militar-autoritária no Brasil ver Cardoso (1972), Stepan (1973, 1975 e 1988) e Skidmore (1988).
2É vasta a literatura sobre a economia brasileira durante o regime militar. Os comentários aqui são baseados nos trabalhos de Serra (1982), Fishlow (1973), Suzigan (1974) e Longo (1993). 3Sobre a transição brasileira, veja Martins (1986), Stepan (1989), Lamounier (1988 e 1989), Velasco e Cruz e Martins (1983) e Diniz (1985).
4Um balanço das diferentes abordagens explicativas da abertura política encontra-se em Figueiredo e Cheibub (1982) e Diniz (1985). Sobre o início da transição, ver também a excelente análise de Lamounier (1979).
5Como Rouquié (1982:3) observou "um sistema permanente de domínio militar é quase uma contradição em termos. A instituição militar não pode governar de forma direta e duradoura sem deixar de sê-la".
6Desaceleração do PIB, que caiu de 14% em 1973 para 9,8% em 1974 e 5,6% no ano seguinte, aumento significativo do déficit em conta corrente (de US$ 1,7 bilhão em 1973 para US$ 7,1 bilhões em 1974) e crescimento da dívida externa (de US$ 6,2 bilhões em 1973 para US$ 11,9 bilhões em 1974, alcançando US$ 56,3 bilhões em 1981) Serra (1982).
7É bem provável que o processo político teria caminhado em outra direção caso tivesse sido seguido o segundo curso de ação, defendido pelos setores mais radicais da oposição. De qualquer forma, a democratização tanto poderia ter sido de outra natureza como poderia ter sofrido uma reversão autoritária.
8Recorde-se que José Sarney filiou-se ao PMDB apenas para que pudesse concorrer à vice-presidência, dado que havia se desligado do PDS e o PFL ainda não havia sido fundado.
9 Sobre a Constituição de 1988, ver Souza e Lamounier (1990).
10 Como assinala Sallum Jr. (1999:27), "apesar de decadente, o modelo nacional-desenvolvimentista (certamente sob vestes mais democráticas) foi juridicamente consolidado pela Constituição de 1988".
11 Sobre esta questão ver Barros et alii (2000).
12 Sobre esta questão ver, especialmente, Lamounier (1992); Kinzo (1997) e Couto (2000). 13 Antes de um simples produto do sistema de representação proporcional, esta situação tem a ver com uma legislação partidária e eleitoral que possibilita alianças partidárias até mesmo nas eleições proporcionais, garantindo acesso ao horário eleitoral gratuito mesmo a partidos sem nenhuma expressão política, e com a desvinculação partidária do mandato eleitoral, isto é, a ausência de qualquer impedimento para troca de agremiação partidária de um detentor de mandato eletivo.
14 Como vários estudos têm indicado, a volatilidade eleitoral no Brasil, embora decrescente, é ainda bastante acima da média encontrada nas democracias consolidadas. Sobre a volatilidade eleitoral no Brasil, ver Nicolau (1998) e Peres (2000).
15 De acordo com Tsebelis (1995), a probabilidade de mudança do status quo é uma função não apenas do número de veto players, ou seja, atores institucionais e partidários com capacidade de vetar uma proposição, mas também da coesão de cada ator coletivo. No caso brasileiro, pode-se dizer que, dado que os partidos da presente coalizão governamental nem sempre se apresentam com alta coesão, no sentido de compartilhar posições ou princípios definidos e claros, são possivelmente mais propensos à negociação embora a dificultem o mais que puderem.
16 O poder do Executivo não se limita às Medidas Provisórias, uma vez que também detém a prerrogativa exclusiva de iniciativa legislativa em várias matérias, entre elas as referentes ao orçamento federal. Além disso, o Executivo pode interferir na agenda legislativa, solicitando ao colégio de líderes urgência na tramitação de uma matéria de seu interesse. Ver Figueiredo e Limongi (1994).

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