terça-feira, março 27, 2007

Das concepções hegemôncas às não-hegemônicas

DEMOCRATIZAÇÃO DA POLÍTICA EDUCACIONAL BRASILEIRA E O FUNDEF: uma análise de suas práticas discursivas - do “dito feito” ao “feito não dito”


Prof. Dra. Célia Maria Rodrigues da Costa Pereira



DEMOCRACIA: DAS CONCEPÇÕES HEGEMÔNICAS ÀS CONCEPÇÕES NÃO HEGEMÔNICAS –
A BUSCA DA UTOPIA DESEJADA


Na qualidade de categoria política, a democracia traz consigo uma complexidade que lhe é constitutiva. Como o Estado, a democracia é tema contestável e submetido a controvérsias, tal como indica a diversidade de abordagens teórico-conceituais que lhe concernem. A própria história do Ocidente evidencia uma contenda sobre suas virtudes e seus defeitos como um governo do povo. E apesar disso, desde a antiguidade grega, a democracia permanece como reivindicação cada vez mais defendida e, quanto mais ela é alvo de polêmicas e discussão em torno de suas características, mais se aspira a sua afirmação.
Considerada como um modo de organização social, a democracia tem encontrado na participação um dos seus significantes, cuja tônica tem dependido da perspectiva teórica em que se acha inscrita, podendo assumir conotações diversas.
A participação se acha vinculada às contingências históricas, aos tipos de relações sociais e políticas vigentes numa dada conjuntura. Participação política e democracia possuem entre si uma estreita articulação, não obstante as diferentes conotações que historicamente vêm sendo atribuídas a essa relação.
As abordagens apresentadas a seguir contemplam elementos que caracterizam as diferentes formas de entendimento da participação, possibilitando identificar aquelas que se coadunam com a perspectiva crítico-emancipatória que respalda o presente trabalho.

1.2.1 - CONCEPÇÕES HEGEMÔNICAS DE DEMOCRACIA:
A PARTICIPAÇÃO COMO LEGITIMAÇÃO -
UMA INTEGRAÇÃO CONSENTIDA

Ao longo do século XX a democracia assumiu lugar de destaque no campo político, tornando-se alvo de disputas travadas em torno de suas concepções, de modo particular nos momentos pós-guerras mundiais e no período da chamada guerra fria [1]. Vale observar que a primeira metade desse século foi palco de uma profunda crise de democracia, sobretudo, durante o período do nazifacismo, na Europa. Na segunda metade, mais especificamente, ao longo dos últimos vinte anos, a democracia como um valor universal, sobretudo no Ocidente, ocupa um significativo espaço discursivo, estando presente nos diversos projetos políticos.
Observamos que o pensamento político e sociológico que demarcou o século passado, sobretudo na sua primeira metade, se situa entre duas diferentes linhas de reflexão no que se refere à desejabilidade da democracia, envolvendo inúmeros teóricos[2] de diferentes partes do mundo.
Contudo, Santos, com base nas análises de Schumpeter (1942), destaca que
“se por um lado, tal debate foi resolvido em favor da desejabilidade da democracia como forma de governo, por outro, a proposta que se tornou hegemônica ao final das duas guerras mundiais implicou em uma restrição das formas de participação e soberania ampliadas em favor de um consenso em torno de um procedimento eleitoral para a formação de governos” (SANTOS, 2002, p. 40)

Esse período foi demarcado pela polarização entre duas concepções de democracia: a liberal-democracia (MacPherson, 1996), preconizando os direitos individuais, que deteve a hegemonia, e a “concepção marxista de democracia que entendia a autodeterminação no mundo do trabalho como o centro do processo de exercício da soberania por parte dos cidadãos entendidos como indivíduos produtores”. (p.44).
É em meio à disputa entre essas duas visões que três questões se colocaram no debate democrático: “a relação entre procedimento e forma, o papel da burocracia na vida democrática e a inevitabilidade da representação nas democracias de grande escala” (idem).
Com respeito à primeira questão, a relação entre procedimento e forma, a concepção hegemônica de democracia concedeu privilégio à forma em detrimento da substância, posição que se tornou alvo de críticas pelo pensamento marxista. Desse modo, a chamada democracia procedimentalista, conforme formulação de Hans Kelsen, procurou aliar o relativismo moral[3] com métodos capazes de promover o enfrentamento de divergências, tanto em nível do parlamento como nas formas diretas de manifestação. Ao se contrapor à idéia de que “a democracia poderia corresponder a um conjunto preciso de valores, a uma forma única de organização política”, Kelsen (1929), citado por Santos (2002, p.105/106) afirma que
“o relativismo é a concepção do mundo suposta pela idéia de democracia (...). A democracia dá a cada convicção política a mesma possibilidade de exprimir-se e de buscar o ânimo dos homens através da livre concorrência. Por isso, o procedimento dialético adotado pela assembléia popular ou pelo parlamento na criação de normas, procedimento esse que se desenvolve através de discursos e réplicas, foi oportunamente conhecido como democrático”.

No período compreendido entre-guerras e logo os pós-guerras, Schumpeter e Bobbio contestam tal posição e transformam o procedimentalismo democrático naquilo que vai ser denominado de elitismo democrático.[4] Partem, assim, do “questionamento da idéia de uma soberania popular forte associada a um conteúdo de sociedade proposta pela doutrina marxista[5]” (p.45).
Negando a possibilidade de o povo governar, Schumpeter[6] diz não ser possível se pensar numa democracia popular enquanto um posicionamento racional do povo ou de indivíduos isoladamente frente às questões que lhe são postas. Tecendo críticas à idéia de que a vontade dos homens seja algo ordenado, Schumpeter considera que “tais vontades não passariam de impulsos vagos operando em relação a slogans disponíveis e impressões falsas” (SCHUMPETER, 1942, p. 253).
Para ele, “o processo democrático é um método político, um certo tipo de arranjo institucional para se chegar a decisões políticas e administrativas” (idem). Assim sendo, as regras para a tomada de decisões devem se tornar um método para a constituição de governos.
Avançando nessa discussão, Bobbio (1979) advoga que o procedimentalismo seja transformado em regras para a constituição de governos representativos. Concebendo a democracia como um conjunto de regras para a formação de maiorias, afirma a necessidade de se conferir peso igual aos votos, eliminando-se qualquer distinção de natureza econômica, social, étnica na composição do eleitorado.
Ao conceber a democracia a partir das regras do jogo, Bobbio acredita na possibilidade do predomínio da maioria, na garantia do pluralismo e na promoção de uma participação mais ampla dos indivíduos, afirmando, conseqüentemente, o respeito às minorias.
É interessante frisar que Santos (2002, p.46), analisando o percurso trilhado pelo procedimentalismo democrático/elitismo democrático de Kelsen a Bobbio, observa a sua incapacidade em possibilitar espaços de ampliação do jogo democrático, face ao seu reducionismo a processos eleitorais das elites incapazes de representar os anseios dos cidadãos e de representar diferenças.
Quanto à segunda questão, a relação entre burocracia e democracia, segundo Santos, Max Weber dá origem a uma linha de questionamento da teoria clássica da democracia, “ao colocar no interior do debate democrático do início do século a inevitabilidade da perda de controle sobre o processo de decisão política e econômica pelos cidadãos e seu controle crescente por formas de organização burocrática” (46). Segundo esse teórico, afirma Santos,
“o fenômeno da complexidade[7] criava problemas para o funcionamento da democracia, na medida em que criava uma tensão entre soberania crescente, no caso dos governos pelos governados, e soberania decrescente, no caso o controle dos governados pela burocracia” (p. 47).

Foi justamente a compreensão acerca da encruzilhada que se estabeleceu entre um “mundo administrado” – jaula de ferro – e o perigo de emergência de posturas emocionais capazes de gerar poderes carismáticos que Weber se mostrou pessimista. Basta lembrar a crescente complexificação burocrática, na segunda metade do século XX que possibilitou a consolidação das burocracias estatais.
Vale destacar que, na opinião de Avritzer, Max Weber foi o pensador que explicitou de modo mais enfático a contradição existente entre a complexificação da burocracia, a participação e a argumentação.
As idéias de Weber em torno da relação burocracia/democracia foram corroboradas por Bobbio (1989, p. 33-34), para quem “tecnocracia e democracia são antitéticas: se o protagonista da sociedade industrial é o especialista, impossível que venha a ser o cidadão comum”. Comungando com Weber, Bobbio considera que à proporção que o homem opta pela sociedade industrial de consumo em massa está, simultaneamente, abdicando de exercer o controle tanto das atividades políticas como econômicas, favorecendo, por conseguinte, a dominação burocrática.
No que se refere à terceira questão, a exigência da representatividade nas democracias de grande porte, encontramos no pensamento de Robert Dahl (1998, p. 110), o argumento de que a representatividade se coloca como solução para o problema da autorização, pois “quanto menor for uma unidade democrática, maior será o potencial para a participação cidadã e menor será a necessidade para os cidadãos de delegar as decisões de governo para os seus representantes” .
A autorização passa a constituir elemento indispensável à representação, sendo justificada, de um lado, pela necessidade de obtenção do consenso dos representados e, de outro, conforme Stuart Mill, pela possibilidade de as formas de representação traduzirem as diferentes opiniões existentes.
Nesse aspecto, Santos (2002, p.49) contra-argumenta que se é verdade, conforme afirma Dahl, que a autorização por meio da representação contribui para ampliar o exercício da democracia, não é bem verdade que ela consiga dar conta da questão da identidade e da prestação de contas.
Da corrente do elitismo democrático encontramos dentre outros pensadores contemporâneos, Giovanni Sartori (1994), para quem a democracia é uma palavra tão transparente, isto é, uma palavra fácil de ancorar num significado literal, original. Por isso é facílimo definir democracia verbalmente.
Em termos literais, democracia “significa poder do povo, significa que o poder pertence ao povo. Mas isso não passa de uma definição ao pé da letra. (...). a questão não é só o que significa a palavra. Também é, ao mesmo tempo, que coisa representa?”. (p. 22-23). Para o autor, embora a democracia possua precisão literal, há pouca equivalência entre as práticas e a sua acepção.
Assim, “o que a democracia é não pode ser separado do que a democracia deve ser. Uma democracia só existe à medida que seus ideais e valores dão-lhe existência”[8] (p. 23). Isso porque a democracia comporta tanto uma dimensão descritiva, como uma descrição normativa e persuasiva, o que requer que tal categoria política comporte uma definição descritiva e prescritiva, considerando-se que:
a) “o ideal democrático não define a realidade democrática e, vice-versa, que uma democracia não é, e não pode ser, o mesmo que uma democracia ideal”;
b) “a democracia resulta de interações entre seus ideais e sua realidade e é modelada por elas: pelo impulso de um deve ser e pela resistência de um é”(p. 24).

O problema crucial passa a ser, conforme Sartori, “descobrir em que medida e de que maneira os ideais são realizáveis”, ou seja, reside na tradução dos ideais.
Em sua teoria da democracia revisitada, Sartori chama a atenção para a necessidade de se considerar a democracia como o governo pela discussão, pois discutir acerca da discussão sobre democracia permite gerar argumentos que possibilitam avançar na sua compreensão, pois não pode haver uma boa teoria sem que esteja fundamentada em argumentos sólidos.
De modo geral, podemos verificar que a concepção hegemônica de democracia na primeira metade do século XX se viu desafiada a resolver questões ainda pendentes que opunham democracia representativa e democracia popular, ganhando relevo o elitismo democrático. (SANTOS, 2002, p. 50).
Entretanto, nesse mesmo período do pós-guerra, surgiram concepções alternativas à concepção dominante, mas que não conseguiram romper com a visão procedimentalista de Kelsen. Nesse sentido, conforme Santos (idem), tais concepções contra-hegemônicas “mantiveram a resposta procedimental ao problema da democracia, vinculando procedimento com forma de vida” (idem), uma forma, portanto, de promover o aperfeiçoamento das relações humanas.
Entretanto, tais concepções não-hegemônicas como aquelas formuladas por autores como Lefort (1986), Castoriadis (1986), Habermas (1995), Lechner (1988), Boron (1994), Nun (2000), entre outros, negaram “as concepções substantivas de razão e as formas homogeneizadoras de organização da sociedade, reconhecendo a pluralidade humana” (idem).
É na idéia de pluralidade humana que encontramos o foco das diferenças de abordagem, cuja materialidade vai ser evidenciada na negação do ideário de bem comum, na criação do que vem sendo denominado de uma nova gramática social e cultural[9], e a preocupação com uma nova institucionalidade da democracia. A questão básica que subjaz às concepções não-hegemônicas é a de entender a democracia numa perspectiva sócio-histórica, não determinada aprioristicamente, com base em leis naturais.
Além disso, têm que enfrentar as rápidas e profundas transformações que vêm se operando, em escala mundial, nos diversos campos da atividade humana – na economia, na cultura, na política - colocando para as Ciências Sociais a tarefa de fornecer elementos que permitam reinterpretá-la, atualizá-la e adequá-la às exigências da contemporaneidade.
Nesse contexto, importa considerar a perda de centralidade das contradições de classe, questão que alimentou, nos dois últimos séculos, as reflexões em torno do papel do Estado e das suas formas de articulação com a sociedade civil, tal como assinalamos anteriormente.
É bem verdade que, nos últimos séculos, tanto acadêmicos como a própria classe política têm se preocupado em investigar as qualidades e os limites da democracia enquanto regime de governo. Quando analisada em sua forma de expressão nos remotos tempos da Antiguidade, com freqüência lhe são conferidos atributos negativos como a volubilidade e a demagogia, traços que teriam se restringindo ao longo dos tempos. Hoje, chega-se a tomar a democracia como um valor universal, conforme explicita Carlos Nelson Coutinho[10], no entanto, a grande questão a saber continua sendo: Por Que Democracia? (1984) e Qual Democracia? (1992), questões postas por Weffort.
Desejada por todos os povos do mundo, a democracia como um valor universal vem ganhando significativo espaço discursivo nos tempos hodiernos, mais precisamente a partir dos últimos vinte anos do século passado, quando passa a figurar com destaque em agenda dos mais diversos projetos políticos, sobretudo no Ocidente[11].
Se no século XX, particularmente na sua primeira metade, assistiu-se à contenda entre a democracia liberal, preconizando os direitos individuais, e a democracia popular, que concedera ênfase “à soberania e à vontade popular absolutas”, mais recentemente, “a complexidade da competição foi ampliada pela chegada dos “pós-modernos” da democracia radical, decididos a desentrincheirar (ou destruir) tanto as premissas individualistas como as coletivistas dos rivais do passado” (Dallmayr, 2001, p. 12).
Segundo os novos debates travados em torno da democracia, as perspectivas que entram em cena tentam contestar o modelo liberal-individualista e o modelo republicano.
É oportuno lembrar que, na corrente liberal-democrática, pensamento hegemônico nas sociedades capitalistas, em que pesem as diferenças acerca do conceito de democracia, alguns princípios lhes dão fundamento e unidade, podendo ser mencionados:
. igualdade política assegurada pelo sufrágio universal e igualdade de oportunidades de acesso aos canais de influência sobre os líderes;
. estabilidade do sistema, garantida pelo nível de participação da maioria;
. a participação da maioria realizada por intermédio da escolha daqueles que tomam decisão.
Tais princípios, no entanto, deixam entrever que a função da participação se restringe à proteção do indivíduo contra decisões arbitrárias dos líderes eleitos e à proteção de seus interesses privados.
Nesse sentido, busca-se reconceitualizar a democracia popular, consubstanciada em governo popular de “forma a fugir dos encantos da soberania ou da identidade coletiva (de direita e da esquerda) e de fazê-lo sem invalidar ou se desviar do governo popular para privilegiar o mercado e o liberalismo de cooperação ou o neoliberalismo” (p. 20).
Entretanto, o modelo prevalecente, em âmbito mundial, é o liberalismo de cooperação ou neoliberalismo, não obstante as crises do mercado globalizado, cujos reflexos se fazem sentir na perda das conquistas históricas da cidadania, no aviltamento das condições de vida da população de muitos países.
Com base na constatação dessa irrestrita influência das forças do mercado, tanto nas sociedades ocidentais, como nas sociedades não ocidentais, provocando efeitos nefastos às suas populações, Dallmayr alerta para a necessidade de se pensar a democracia fora dos limites da modernidade, evitando a produção de novos desencantos. Nesse sentido, considera importante a contribuição de pensadores pós-modernos[12], dentre os quais Laclau e Mouffe, que rejeitam a “metafísica moderna” centrada no sujeito e no conceito de um macrossujeito totalizador de imensas massas populares.
Para tais autores, bem como para outros como Lefort, Habermas, Santos, importa conceder relevo à sociedade civil, à pluralidade do social e à dimensão política. As contribuições por eles trazidas ao debate contemporâneo sobre democracia embasam o presente trabalho.

1.2.2 – CONCEPÇÕES NÃO-HEGEMÔNICAS DE DEMOCRACIA: EM BUSCA DO VALOR UNIVERSAL E DA PARTICIPAÇÃO COMO ELEMENTO DE EMANCIPAÇÃO

O grande desafio que parece dar unidade às contribuições dos pensadores que têm apresentado propostas que se situam para além do campo hegemônico tem sido o de imprimir à democracia a condição de um valor universal, presente nos projetos políticos dos diversos povos do mundo. Uma concepção de democracia que entende a participação como um elemento indispensável ao exercício da cidadania plena, comprometida com a emancipação política e social dos indivíduos e, por conseguinte, bem distinta do entendimento de participação inscrita nas concepções hegemônicas de democracia.
Dedicando atenção às formas de coletivismo de esquerda e de direita, Claude Lefort elabora uma concepção de democracia que vai além da soberania e da identidade coletiva. Promovendo a distinção entre “o político” e “a política”, Lefort mostra que há nas teorias em discussão uma redução do primeiro em relação ao segundo conceito, posição que considera equivocada. Para ele, a política traduz as estratégias, enquanto o político exprime “a matriz constitutiva, quase transcendental da vida política, isto é, o espaço público que permite o mise-en-scène (ou encenação da política)” (LEFORT, 1988, p. 19)
A democracia moderna é a única que representou o poder de tal forma a mostrar que
“o poder é um local vazio e que mantém uma lacuna entre o simbólico e o real (...); que o espaço democrático significa que o poder maior não pertence a ninguém; que aqueles que exercitam o poder não o possuem; que de fato eles não o incorporaram”. (2001, p. 24).

Lefort advoga uma concepção de democracia “descorporificada”, negando a idéia de soberania popular que permitiu criar o imaginário de uma identidade coletiva, de uma sociedade aparentemente homogênea, firmada na concepção de “um só povo”. Para ele, a “democracia genuína ou radical” permite a remodelagem do poder soberano, uma democracia “marcada por um tipo de incorporação ou desincorporação, pela instituição de uma sociedade sem corpo, que resiste a – desacredita de – qualquer“ totalidade orgânica”. Um tipo de democracia que pressupõe “a existência de uma comunidade cujos membros se descobrem como sujeitos pelo próprio fato de serem membros” (p. 11-13; 16-20).
Noutras palavras, Lefort expressa a negação da existência de qualquer processo de determinação positiva, propondo descentralização da metafísica moderna. Seu pensamento parece aliar-se à perspectiva contemporânea pós-moderna, o que fica evidente em suas próprias palavras:
“em minha opinião, o aspecto importante é que a democracia é instituída e sustentada pela dissolução dos marcadores da certeza. Isso inaugura uma história em que as pessoas sentem uma indeterminação fundamental quanto às bases do poder, da lei e do conhecimento e quanto às bases das relações entre si próprios e o outro, em todos os níveis da vida social”. (LEFORT, 1988, p. 17-19; 223-226).

Tal concepção aproxima Lefort de pensadores contemporâneos que defendem a idéia da descentralização da subjetividade, tanto em nível micro como macro, como Jacques Derrida. Para Derrida (1997, p.10,35,37), é necessário uma “outra política” e uma outra democracia que estão por vir-a-ser, cujo foco reside na anulação da idéia de “nós compartilhado”.
A crítica do humanismo, tanto no sentido de micro como de macrossujeitos também se acha presente nas idéias de Jurgen Habermas expressas no seu modelo de democracia deliberativa ou discursiva que se propõe a corrigir os defeitos apresentados pelas “variantes liberais e republicanas” de democracia, negando o humanismo –o centramento no sujeito-contido em suas premissas.
Para esse teórico, conforme analisa Dallmayr (2001, p.28), o modelo deliberativo

“descarta todos aqueles motivos utilizados na filosofia da consciência (leia-se: filosofia do sujeito) que poderiam levar a pessoa a atribuir o autogoverno popular a um sujeito macrossocial ou então a confiar em mecanismos de governo entre sujeitos individuais concorrentes”.

Conforme Habermas, se a visão republicana trata os cidadãos como um “ator coletivo que reflete o todo”, ou seja, um “sujeito em essência orientado para um objetivo”; na perspectiva liberal tais cidadãos são considerados como “variáveis dependentes, em processo de poder” (idem), visões que são contrariadas pela democracia deliberativa ao conceberem a sociedade como algo descentrado, não se fundamentando, por conseguinte, na filosofia do sujeito.
Nessa ótica de democracia, o eu dos indivíduos “desaparece nas formas de comunicação desprovidas de sujeito, que regulam o fluxo da opinião discursiva e a formação de vontade” (ibdem). Ao invés de admitir a existência de um superego coletivo, de um demos soberano, a Democracia Deliberativa advoga o estabelecimento de procedimentos de comunicação viáveis e adequados[13].
Na formulação dessa concepção ético-procedimental ou racional discursiva, conforme denominou, Habermas retomou o procedimentalismo como prática social, ampliando a proposta de Kelsen, no intuito de superar a visão que lhe fora imprimida por outros teóricos que a entenderam como um método de constituição de governos. Essa tarefa de ampliar a teoria procedimentalista de democracia se deu a partir da introdução de dois elementos na reflexão democrática contemporânea:
1- “uma condição de publicidade capaz de gerar uma gramática societária” – consideração da esfera pública como local em que os indivíduos, sem distinção, problematizem publicamente situações de desigualdade e exclusão na esfera privada da sociedade. Essas ações em público se dão com base no que Habermas denomina de princípio D: “apenas são válidas aquelas normas-ações que contam com o assentimento de todos participantes de um discurso racional” .
2- “um princípio de deliberação amplo” – um procedimentalismo social e participativo. Um procedimentalismo que tenha suas bases na pluralidade das diversas formas de vida existentes na sociedade” (SANTOS, 2002, p. 52).

Nesse sentido, o poder deverá ser exercido coletivamente, abrindo-se espaço para a explicitação pelos indivíduos de razões entre iguais.
As elaborações teórico-conceituais de Habermas permitiram, assim, a reintrodução do debate argumentativo no campo do fazer político, evidenciando como uma de suas preocupações operar uma transformação estrutural da esfera pública, com base na argumentação.
Para esse teórico, a dimensão argumentativa permeia a relação entre Estado-sociedade que transcende a formação da vontade geral, operando com o que ele denominou de deliberação argumentativa [14].
Desse modo, Habermas possibilitou “a recuperação de um discurso argumentativo associado ao fato básico do pluralismo e às diferentes experiências”, fazendo a reconexão entre procedimentalismo e participação. (p. 53). Para ele a constituição da esfera pública faz parte do processo histórico em que se deu a ascensão da burguesia, quando os governados passaram a requerer de seus governantes a justificação moral de suas ações, de forma pública.
É oportuno lembrar que a concepção de esfera pública traz consigo, desde sua origem, características que se acham articuladas às recentes discussões sobre democracia:
Habermas defende, portanto, um locus diferente do Estado, uma esfera pública democrática onde os indivíduos interajam face-a-face, num processo de discussão coletiva acerca das decisões encaminhadas pelas autoridades políticas e de apresentação de demandas deliberadamente eleitas para serem incorporadas na agenda do Estado.
Esse entendimento de esfera pública confere à política uma dinâmica capaz de inibir interesses particulares e de impedir a dominação de alguns indivíduos ao inviabilizar a concentração de poder, visto que o uso público da razão é capaz de promover o vínculo entre a participação e a argumentação pública.
Conforme Habermas, a esfera pública significa uma esfera que inclui sujeitos privados, dotados de opinião própria, concorrendo para garantir a contraposição coletiva a decisões discricionárias do poder público.
Em seu sentido estrito, a esfera pública pode ser vista como um
“campo de tensão entre mundo da vida, por um lado, e sistemas político e jurídico, por outro, ou mais precisamente: como campo de tensão entre mundo da vida e constituição enquanto acoplamento estrutural desses dois sistemas” (NEVES apud SOUZA, 2001, p. 132),

uma vez que na esfera pública se processam interferências estruturais entre os dois sistemas político e jurídico e o mundo da vida. A esfera pública, amplamente concebida,
“torna-se um campo complexo de tensão entre direito e política como sistemas acoplados estruturalmente pela constituição, por um lado, mundo da vida e outros subsistemas funcionalmente diferenciados da sociedade –economia, ciência, religião, etc.- por outro” (133).

Partindo da premissa de que deve haver uma estreita articulação entre moral, política e direito, Habermas adverte que os princípios universais de justiça devem ser respeitados pelas normas jurídicas e que o pluralismo[15], que é inerente à esfera pública, requer a valorização da multiplicidade de valores pelos procedimentos políticos.
A sua proposta de um Estado Democrático de Direito, não obstante se fundamentar na moral, ratifica a natureza legitimadora do procedimento democrático, uma vez que
“o direito não alcança o seu sentido normativo pleno per se, através de sua forma, tampouco mediante um conteúdo moral dado a priori, mas sim através de um procedimento de estabelecimento do direito que produz legitimidade” (HABERMAS apud NEVES, 2001, p. 122).

Daí deriva a compreensão do que Habermas denomina de poder comunicativo, diferentemente do chamado poder administrativo, materializando-se em procedimentos democráticos de formação da vontade estatal, atingindo também a esfera pública. “Trata-se da determinação de decisões vinculatórias e da produção de normas jurídicas entre sujeitos orientados na busca do entendimento” (p. 123).
Nesse processo de articulação entre direito e poder, a análise das formas discursivas presentes na formação racional da vontade política constitui um elemento que permite o entendimento da complexidade inerente à construção do princípio democrático.
Pois esse princípio se acha intrinsecamente vinculado às formas de discurso moral, ético-político e pragmático e jurídico, haja vista que a formação racional da vontade política, além de requerer a articulação entre estas formas discursivas, inclui, também, as negociações que são procedimentalmente reguladas[16]. Trata-se de uma articulação complexa com base na qual se efetiva a aceitação racional dos resultados com base no procedimento.
Contribuições teóricas que ratificam a idéia de que a democracia vem ocupando centralidade na política, sobretudo ao longo do século vinte, são fornecidas por Boaventura de Souza Santos, colocando no centro dos debates a questão da relação regulação/emancipação.
Tecendo crítica à democracia engendrada pela modernidade, Santos afirma a necessidade de se colocar a democracia a serviço da inclusão, em suas múltiplas dimensões, firmada nos princípios da igualdade e da diferença. Uma democracia que seja capaz de vincular o local, o regional e o global, no sentido de resgatar a visão de totalidade e o respeito às especificidades.
As análises de Santos (2002) a respeito da trajetória dos países do sul, a partir dos anos setenta do século passado, evidenciam a emergência de um movimento em prol da reinvenção democrática que se acha ligado aos processos de transição e de ampliação democráticas por que passaram tais nações.[17] Essas e tantas outras experiências, além da ampliação da democracia, refletem um processo de redefinição do seu significado cultural ou de sua gramática social.
Desse modo tornou-se possível visualizar que,
“apesar das muitas diferenças entre os vários processos políticos analisados, há algo que os une, um traço comum que remete à teoria contra-hegemônica da democracia: os atores que implantaram as experiências de democracia participativa colocaram em questão uma identidade que lhes fora atribuída externamente por um Estado colonial ou por um Estado autoritário e discriminador” (SANTOS, 2002, p. 57),

colocando-se a gramática social e estatal em xeque, face ao seu caráter excludente, abrindo-se perspectivas para a proposição de uma agenda comprometida com a inclusão. Santos afirma que sua concepção de democracia participativa representa uma forma de efetivar a emancipação social à proporção que pode contribuir para a ampliação da atuação dos sujeitos nos processos decisórios. Uma democracia que se assenta nos movimentos sociais que põem em xeque as históricas e crônicas práticas de exclusão, abrindo, por conseguinte, espaços de consolidação de uma nova cultura política, ao concorrer para que os cidadãos promovam o controle das ações governamentais, exercendo força de pressão junto às formas de exercício da democracia representativa.
Para esse teórico, o compromisso com a emancipação requer se pensar um novo senso comum político, revalorizando-se “o princípio da comunidade e, com ele, a idéia de igualdade sem mesmidade, a idéia de autonomia e a idéia de solidariedade” (SANTOS, 1996, p. 278). Esse novo senso comum deverá ser construído sob o princípio da comunidade,
“com as suas duas dimensões (a solidariedade e a participação), e a racionalidade estético-expressiva (o prazer, a autoria e a artefatualidade discursiva)”. Resumidamente, as três dimensões do novo senso comum são: a solidariedade (dimensão ética), a participação (dimensão política) e o prazer (dimensão estética)” (SANTOS, 2000, p. 111).

Torna-se, desse modo, de vital importância a renovação da teoria democrática, mediante o estabelecimento de critérios de participação política que extrapolem a representação eleitoral, articulando-se a democracia representativa, que deverá ser ampliada e aprofundada pela democracia participativa. Para isso, o campo do político precisa ser radicalmente redefinido e ampliado.
Portanto, uma nova teoria democrática, conforme Santos (2000, p. 271-276),
“deverá proceder à repolitização global da prática social e o campo político imenso que daí resultará permitirá desocultar formas novas de opressão e de dominação, ao mesmo tempo que criará novas oportunidades para o exercício de novas formas de democracia e de cidadania”.

Essa nova teoria é por ele designada de pós-moderna que visa romper com a democracia liberal, pelo alargamento do campo político nos múltiplos espaços estruturais da interação social. Tal alargamento se dará mediante uma ação de repolitização que possibilite identificar relações de poder existentes nos diversos campos da ação humana, buscando práticas e mecanismos que permitam transformá-las em “relações de autoridade partilhada”.[18]
Nesse sentido, a democracia participativa permite atuar tanto nos espaços estatais, como no terreno da sociedade civil, ampliando as possibilidades de organização dos agentes sociais na defesa de políticas públicas inclusivas, gerando mudanças nas práticas políticas, efetivando aquilo que se pode designar de repolitização global da vida social, pelo permanente exercício da democracia.
As possibilidades desse tipo de democracia poder contribuir efetivamente para a emancipação social dependem da prática de uma participação ampliada dos diferentes atores sociais e políticos na cena dos processos decisórios.
As pressões exercidas junto aos institutos da democracia representativa com vistas à adoção de práticas inclusivas, aliadas às mais diversas formas de participação na vida social, especialmente em nível local, serão de grande relevo na efetivação da complementaridade entre democracia participativa e democracia representativa, dando lugar à pluralidade cultural e o reconhecimento de novas identidades, aspectos que foram desconsiderados pela democracia representativa e que incorporam a agenda de compromisso da democracia participativa.
Com efeito, a democracia participativa propõe o estabelecimento de um contrato social[19] diferente daquele que se viu presente ao longo da modernidade. Um contrato que assuma como prerrogativas a emancipação social, a inclusão e a consideração tanto de indivíduos isoladamente como também de grupos sociais, tendo em vista a eliminação dos mecanismos de exclusão da cidadania, ampliando a sua concepção “para além do princípio da reciprocidade e simetria entre direitos e deveres”, com base num novo entendimento de subjetividade.
Um novo contrato social, portanto, capaz de comportar a igualdade, a diferença, o multiculturalismo, não tratando de forma rígida, as clássicas distinções entre os diferentes campos da atividade política: Estado x sociedade civil, público x privado, política x economia.
Conforme Santos (1998, p. 7), no contrato social adotado na modernidade “os critérios de inclusão/exclusão que ele estabelece vão se tornar o fundamento da legitimidade da contratualização das interseções econômicas, políticas, sociais e culturais”. Em que pese a lógica inclusão/exclusão representar a base fundante da contratualização, a sua legitimidade se firma pela inexistência de excluídos, estes últimos
“são declarados vivos em regime de morte civil”, o que evidencia a permanente tensão em que vive o contrato social, as suas “possibilidades imensas coexistem com a sua inerente fragilidade”. (idem).

Desse modo, tal forma de contrato social apresenta duas limitações: uma relativa aos próprios princípios que lhe dão assento –inclusão/exclusão e outra inerente às desigualdades produzidas pelo sistema mundial moderno. A primeira diz respeito à idéia de que “a inclusão tem sempre por limite aquilo que exclui”, ou seja, a produção da não cidadania pela economia e a despolitização e privatização da esfera não estatal. A segunda está ligada às diferentes formas de sociabilidade consoante com as diferentes posições ocupadas pelos países na ordem mundial: centro/periferia, gerando-se pequenos focos de inclusão contra grandes malhas de exclusão, bem como ao advento da “privatização do Estado e da patrimonialização da dominação política” (p. 14-15).
Face à crise do contrato social moderno, decorrente da produção em grande proporção da exclusão, em escala mundial, e aos riscos com que a humanidade se depara em decorrência de sua erosão, o desafio que se acha posto é o de gerar alternativas de sociabilidade que permitam novas possibilidades para a democracia[20]. Essa tarefa, num nível mais geral, segundo Santos, traduz-se na reconstrução ou reinvenção de um espaço-tempo que permita a viabilização de uma deliberação democrática que atente para os seguintes princípios:
· “Não basta pensar em alternativas (...). Precisamos de um pensamento alternativo de alternativas.[21]
· Enquanto as ciências têm se preocupado em distinguir entre estrutura e ação, proponho que nos centremos na distinção entre ação conformista e ação rebelde, a ação por ação-com-clinamen.[22]
· A exigência cosmopolita do tempo-presente tem como componente central a reinvenção de espaços-tempos que promovam a deliberação democrática” (p. 45-47).

Concluindo, a teoria da democracia participativa se pauta em três teses derivadas de seus pressupostos basilares: o fortalecimento da demodiversidade, valorização do multiculturalismo e das experiências participativas; o fortalecimento da articulação contra-hegemônica entre o local e o global, expandindo experiências alternativas exitosas de participação e a ampliação do experimentalismo democrático, como condição à garantia da pluralização cultural, racial e distributiva da democracia.
Esses princípios indicam que o novo contrato social tem caráter inclusivo, sendo mais conflitual do que consensual, ampliando seu raio de abrangência, comportando os espaços-tempos local, regional e global. Nele, a deliberação democrática, ao se constituir enquanto exigência cosmopolita, não ocupa um lugar determinado nem apresenta materialidade institucional específica (p. 48).
Integrando o pensamento não hegemônico sobre democracia, Laclau e Mouffe oferecem proposições teóricas que contribuem para a inauguração de um novo imaginário político, para a instalação de uma política democrática radical e plural, concepção que passaremos a tratar de forma mais detalhada, tanto por constituir dimensão ressaltada pela Teoria de Discurso que informa o presente trabalho, como por permitir tratar a democracia a partir do surgimento de novos antagonismos e de novos sujeitos políticos coletivos, possibilitando a visualização de espaços de generalização da revolução democrática.

1.2.3 - DEMOCRACIA RADICAL E PLURAL:
DESEJABILIDADE A PERSEGUIR

Laclau e Mouffe desenham a sua concepção de democracia radical a partir da aceitação da pluralidade e da idéia de indeterminação do social, bases que possibilitam pensar um novo imaginário político, um novo projeto radicalmente libertário, conforme pressupõe a própria adjetivação que lhe dá assento, sendo, por isso mesmo, muito mais ousado do que as propostas vislumbradas pela esquerda clássica.
A concepção de democracia radical e plural apresenta visíveis diferenças de outras vertentes das correntes democráticas, a exemplo de pensadores marxistas, como Gramsci e Togliatti, que preconizam, de modo geral, a atuação das classes trabalhadoras na luta pela democracia e a presença de um Estado como locus de exercício do poder, combinando a socialização da participação política com a socialização do poder.
Ao se deterem na análise da trajetória do projeto iluminista, Laclau e Mouffe apontam a necessidade de superação da perspectiva essencialista que vem, historicamente, inspirando as concepções de mundo, inclusive as formas do fazer político, tecendo críticas contundentes ao racionalismo e ao subjetivismo, concepções que têm embasado as análises da realidade, em suas múltiplas dimensões, comungando, nesse aspecto, com as correntes do pensamento pós-moderno.
Nessa discussão, tais pensadores consideram necessário diferenciar subordinação, opressão e dominação, com a clareza de que relações de subordinação podem se transformar em relações de opressão, cedendo lugar à emergência de antagonismos que só poderão emergir à proporção que o “caráter diferencial positivo da posição de sujeito subordinada é subvertido”, (LACLAU e MOUFFE, 1985, p. 49).
Laclau e Mouffe partem da tese de que
“foi somente a partir do momento em que o discurso democrático se dispôs a articular as diferentes formas de resistência à subordinação, que surgiram as condições que permitiram a luta contra diferentes tipos de desigualdade” (idem).

Afirmam eles que o “o princípio democrático da liberdade e da igualdade teve, primeiro, que se impor como nova matriz do imaginário social; ou, em nossa terminologia, constituir um ponto nodal fundamental na construção do político”, fato que se deu há cerca de duzentos anos, no Ocidente, em que “a lógica da equivalência foi transformada no momento fundamental da produção do social” (ibdem).
Analisando o percurso histórico da revolução democrática, Laclau e Mouffe dizem que sua origem é encontrada na Revolução Francesa[23], pois foi neste momento histórico que se deu uma verdadeira descontinuidade, gerando uma nova cultura democrática.
Nesse particular, comungam com François Furet, reafirmando que
“a Revolução Francesa não é uma transição, é uma origem, e o fantasma de uma origem. O que é singular nela é o que constitui seu interesse histórico, e, mais ainda, é este elemento singular que nela se tornou universal: a primeira experiência de democracia”, idéia que é reforçada por Hannah Arendt, quando diz que foi a Revolução Francesa e não a Americana que incendiou o mundo, porque foi a primeira a se fundar unicamente na legitimidade do povo” (p. 50).

Para eles, as mudanças provocadas pela Declaração dos Direitos do Homem engendraram as condições discursivas que “permitiram propor as diferentes desigualdades como ilegítimas e antinaturais, tornando-as equivalentes como formas de opressão” (p. 51), evidenciando o potencial subversivo do discurso democrático na medida que fomentou diferentes formas de enfrentamento da subordinação. Admitem que as formas de resistência às relações de subordinação possuem um caráter polissêmico que as tornam dependentes de uma articulação hegemônica.
As reflexões tecidas por esses teóricos conduzem à constatação de que o surgimento de novos antagonismos e de novos sujeitos políticos, sobretudo a partir das últimas décadas do século XX, têm se traduzido em espaços de expansão e generalização da revolução democrática. Isso permite visualizar o problema da fragmentação dos chamados sujeitos unitários das lutas sociais, “com que o marxismo se viu confrontado na esteira de sua primeira crise, ao final do século passado”[24] (p. 57).
Seguindo essa linha de raciocínio, tais pensadores advertem que
“a renúncia à categoria do sujeito, como entidade unitária, transparente e suturada, abre caminho para o reconhecimento da especificidade dos antagonismos constituídos na base de diferentes posições de sujeito e, logo, para a possibilidade de aprofundamento de uma concepção pluralista e democrática”. (idem).

Foi a partir da compreensão de que o sujeito se acha envolvido em múltiplas posições que Laclau e Mouffe acharam o fio condutor para a configuração da democracia radical e plural, rejeitando, portanto, a idéia de que as posições do sujeito se acham presas a um princípio fundante “positivo e unitário”. Tal negação permite admitir o pluralismo como algo radical, visto que o mesmo
“só é radical na medida em que cada termo desta pluralidade de identidades encontra em si próprio o princípio de sua validade, sem que este tenha que ser buscado num fundamento positivo, transcendente ou subjacente (...) este pluralismo radical é democrático na medida em que a auto-construtividade de cada um de seus termos é o resultado dos deslocamentos do imaginário igualitário”. (p. 58)

Radicalizar, portanto, o pluralismo constitui para eles uma forma de aprofundar o processo de revolução democrática, à proporção que for capaz de eliminar práticas racionalistas, individualistas, rompendo com o universalismo - o discurso do universal - possibilitando espaços para a articulação de diferentes expressões de lutas democráticas.
Ao se referir ao indivíduo, Mouffe (1993) diz que é preciso concebê-lo não como uma mônoda, um ser livre que precede a própria sociedade, existindo independente dela, mas como “uma posição constituída por um conjunto de posições de sujeito, inscrita numa multiplicidade de relações sociais, membro de muitas comunidades e participante numa pluralidade de formas de identificação coletivas”(113).
Essas afirmativas possibilitam o entendimento de que a democracia radical e plural se traduz num processo de luta em prol da conquista e maior autonomização de esferas de luta e da ampliação de espaços políticos, assumindo como base fundante a equivalência igualitária. Isso pressupõe desconsiderar a classe trabalhadora como categoria universal, ao mesmo tempo em que coloca em evidência a pluralidade de antagonismos.
A pluralidade de relações sociais não deve ser atribuída a uma única classe assim como não se pode dizer que todas as reivindicações e lutas dos trabalhadores se reduzem a um único antagonismo: aquele que se situa nas relações econômicas, pois há uma diversidade de antagonismos que se encontram presentes em outras esferas da existência social.
Laclau e Mouffe (1985, p.59) advertem que
“todas as lutas, sejam elas dos trabalhadores ou de outros sujeitos políticos, entregues a si mesmas, têm um caráter parcial, e podem ser articuladas a discursos muito diferentes. É esta articulação que lhes confere seu caráter, não o lugar de onde elas procedem. Não há, portanto, sujeito algum, (...) necessidade alguma, que seja absolutamente radicais e irrecuperáveis pela ordem dominante e que constitua um ponto de partida absolutamente seguro para uma transformação total”.

Na perspectiva da democracia radical torna-se imprescindível a construção de um novo sistema equivalencial na luta contra a opressão. Laclau e Mouffe dizem que “a tarefa da esquerda não pode ser a de renunciar à ideologia liberal-democrática, mas, ao contrário, aprofundá-la e expandi-la na direção de uma democracia radical e plural” (p. 64).
No entanto, conforme explicitado anteriormente, é difícil superar o essencialismo e a certeza de que o social é suturado, pois tem prevalecido – “um fixismo essencialista” ou ainda “um apriorismo”, que tem impedido a visibilidade da constituição de diferentes práticas articulatórias, da radicalização de múltiplas expressões de lutas democráticas.
Assim, a democracia radical se firma na pluralidade, na abertura, na visão de sujeito como um agente descentrado, condições imprescindíveis para atuar na direção de uma radical transformação.
É no conceito de “guerra de posição” de Gramsci que os autores mencionados foram encontrar os elementos que lhes permitiram conferir uma nova dimensão à idéia de revolução. Para eles, o caráter processual constitui fator decisivo a uma transformação radical, tornando-se, contudo, necessário ampliar os espaços políticos, bem como impedir a concentração do ato revolucionário num único ponto. Desse modo,
“todo projeto de democracia radical implica numa dimensão socialista, pois, é necessário por fim às relações capitalistas de produção, questão que está na raiz de inúmeras relações de subordinação; mas o socialismo é um dos componentes de um projeto de democracia radical, e não vice-versa” (p. 66).

Rompendo com a idéia de uma sociedade suturada, a concepção de democracia radical se defronta com três questões:
- “Como determinar as superfícies de emergência e as formas de articulação dos antagonismos que um projeto de democracia radical deveria abarcar”?
- “Em que medida o pluralismo próprio a uma democracia radical é compatível com os efeitos de equivalência que, são característicos de toda articulação hegemônica”?
- “Em que medida a lógica implícita nos deslocamentos do imaginário democrático é suficiente para definir um projeto hegemônico”? (p. 67)

A análise de tais questões conduz ao entendimento de que qualquer superfície é passível de ser subvertida pelos resultados produzidos por outras superfícies, havendo um permanente deslocamento das lógicas sociais de algumas esferas para outras. Aqui, vale considerar
“que uma luta democrática pode autonomizar um certo espaço em cujo interior ela se desenvolve e produzir efeitos de equivalência com outras lutas num espaço político diferente. É a esta pluralidade do social que se liga o projeto de democracia radical, e a sua possibilidade emana diretamente do caráter descentrado dos agentes sociais, da pluralidade discursiva que os constitui em sujeitos, e dos deslocamentos que têm lugar no interior dessa pluralidade”.(p. 67).
Na construção da democracia radical, as relações sociais são politizadas, promovendo a distinção entre público e privado, “não em termos da colonização do privado pelo público unificado, mas em termos de uma proliferação de espaços políticos radicalmente novos e diferentes” (p. 68). Isso supõe o reconhecimento de uma pluralidade de sujeitos e a construção de identidades coletivas, fortalecendo-se as lutas democráticas específicas, mediante a “expansão de cadeias de equivalência que se estendam a outras lutas” (idem).
A equivalência nunca será total, ela possui uma precariedade que lhe é constitutiva, decorrente da própria desigualdade do social. Isso leva à conclusão de que a equivalência está sempre articulada à lógica da autonomia, sendo por ela “complementada/limitada”, daí porque “a demanda por igualdade não é suficiente, mas precisa ser contrabalançada pela demanda da liberdade” (p. 69), sabendo-se que a liberdade constitui elemento integrante do próprio projeto de democracia radical.
Um projeto que concebe uma sociedade democrática como aquela que possui “uma esfera pública vibrante, onde muitas visões conflitantes podem se expressar e onde há possibilidade de escolha entre projetos alternativos legítimos” (MOUFFE, 2003, p. 4)
Ao analisar a hegemonia do neoliberalismo na atualidade, Mouffe constata a substituição da política pela ética e pela moralidade, reforçando-se a idéia de consenso. A inexistência de uma esfera pública democrática que permita a confrontação agonística tem concorrido para que a organização da co-existência humana e das relações sociais sejam reguladas pelo poder judiciário. É a lei regulando os conflitos, quando a especificidade da democracia deve se firmar no reconhecimento e na busca de legitimidade do conflito, recusando-se a sua eliminação pela via do autoritarismo imposto.
Daí a urgente necessidade de se proceder ao restabelecimento da centralidade da política, apresentando alternativas ao neoliberalismo. Ao tratar das questões relativas à globalização, Mouffe observa que ao concebê-la como resultado da revolução científico-tecnológica, está se retirando dela a dimensão política. Pois, conforme Gorz (1997)[25] argumenta, a globalização deveria ser vista como um movimento do capitalismo, traduzindo uma resposta política à crise de governabilidade instalada na década de setenta, conduzindo ao que ele chamou de divórcio entre o espaço da política e o espaço da economia.[26]
Acatando a abordagem de Gorz, Mouffe concorda com a possibilidade de se criar uma contra-estratégia capaz de se opor ao poder do capitalismo transnacionalizado mediante um projeto político diferente, possível de enfrentar o neoliberalismo, pela revitalização da esfera pública segundo o modelo de democracia agonística. “O que se apela hoje é para alguma forma de política pós-social democrática, (p.8) um tipo de movimento que está por trás da lógica de muitas políticas definidas pela terceira via” (idem).
Referindo-se ao discurso político da mencionada terceira via, Mouffe ressalta que este assumiu a pretensão de transpor a lógica inconciliável que
“para além da esquerda e da direita, formaria um consenso de centro, que a autora chama de um mundo unidimensional e no qual não haveria possibilidades de mudança na relação de poder então estabelecida” (PINTO, 2005).
Esta análise ratifica a sua própria crítica à democracia deliberativa, que traduziria uma pretensão racionalista de consenso, não permitindo captar a especificidade do político, ou seja, a sua incompletude.[27]
Nesse sentido, o discurso consensual coloca a discussão da democracia fora da arena política, situando-a na sociedade civil sem antagonismos. Ora as relações de poder são constitutivas do político e a democracia não pode ser vista a partir de um consenso que desconheça as relações de poder. Nesse aspecto, “a principal questão da política democrática torna-se, então, não como eliminar o poder, mas como constituir formas de poder que sejam compatíveis com valores democráticos” (MOUFFE, 2003, p. 04).
Conforme Mouffe não podemos conceber uma sociedade democrática como sendo perfeitamente harmônica, transparente, capaz de ver concretizado o seu sonho, haja vista a impossibilidade de emancipação total, da não erradicação do poder e do antagonismo, pois a “objetividade social é constituída através de atos de poder” (...) e o ponto de convergência entre objetividade e poder é precisamente o que designamos de hegemonia” (p. 05).
O consenso é sempre temporário, resultante de um processo de hegemonia provisória, de uma estabilização de poder que, de alguma forma produz exclusão, concepção que permite pensar de forma diferente a natureza da esfera pública democrática. Assim, a possibilidade de se obter consenso completo pela argumentação, conforme apregoa Richard Rorty constitui ameaça à democracia radical, à proporção que gera inibição de dissensos, desconsidera os processos de exclusão presentes no estabelecimento de consensos.
Para Mouffe (p. 06) é preciso formular um “modelo agonístico de democracia”, distinguindo dois tipos de relações políticas: a de antagonismo, que se dá entre inimigos a serem destruídos, e a de agonismo que se efetiva entre adversários, portadores, portanto, de idéias diferentes, um adversário que tem em comum “a adesão partilhada aos princípios ético-políticos da democracia”.
Com base nessa distinção, Mouffe propõe a prática do pluralismo agonístico, afirmando que a
“a tarefa primária da política democrática não é eliminar as paixões nem relegá-las à esfera privada para tornar possível o consenso racional, mas para mobilizar aquelas paixões em direção à promoção do desígnio democrático. Longe de por em perigo a democracia, a confrontação agonística é a sua condição de existência” (idem).
O dissenso constitui exigência de uma democracia pluralista e o consenso de que ela necessita é aquele que se dá em torno de seus princípios ético-políticos constitutivos.
Assim, uma democracia agonística, conforme pensada por Mouffe, pressupõe a compreensão de suas fronteiras e das formas de exclusão por elas encetadas, conferindo à diferença a possibilidade de viabilização da unidade e da totalidade, ao mesmo tempo em que evidencia seus limites essenciais, pois qualquer objetividade social “é, em última instância, política e isso tem que mostrar os traços de exclusão que governam a sua constituição” (ibdem).
Nesse sentido, a aceitação do pluralismo agonístico deve partir da aceitação da
“multiplicidade de cada um e das posições contraditórias a que esta multiplicidade subjaz. Sua aceitação do outro não consiste meramente em tolerar as diferenças, mas em celebrá-las positivamente porque admite que, sem alteridade e o outro nenhuma identidade poderia se firmar”( p.0 7).
Assim definido, o pluralismo agonístico se fundamenta na diversidade e no dissenso, aspectos que devem ser valorizados no estabelecimento de uma esfera pública democrática.
Por outro lado, o projeto de democracia radical coloca em debate a questão dos direitos, negando, de princípio, qualquer visão dicotomizada entre indivíduo e sociedade, recolocando os direitos no contexto das relações sociais, pois são estas que determinam as diferentes posições do sujeito. Significa dizer que para a democracia radical os direitos ditos individuais não podem ser tratados independentemente, mas a partir da consideração de outros sujeitos que participam na mesma relação social.
Daí a diferença quanto à noção de direitos democráticos, pois exigem a presença de outros sujeitos, efetivando-se de forma coletiva e para além dos espaços tradicionais da cidadania. A própria cidadania precisaria ser entendida numa perspectiva agonística, pois não haveria uma única concepção de cidadania a ser aceita por todos.
Assim, a democracia radical deve ser compreendida como deslocamento equivalencial do imaginário igualitário, a partir da necessidade de anulação da subordinação e das desigualdades. Implica, sobretudo, considerar a questão da hegemonia como forma de produção do social que, segundo Buriti (1994, p. 145), “estará sempre aberta ao antagonismo e ao deslocamento resultante do processo propriamente político de sua constituição”.
A hegemonia, na medida em que se espraia por espaços sociais os mais diversos, se coloca como uma condição de materialização da democracia radical, denegando a possibilidade de um centro unificante quer seja este
“o Estado, a sociedade civil, a classe, o partido, detentor do sentido da história ou de algum privilégio ontológico”. Não implica, contudo, “negar a categoria centro, e sim desincorporalá-la, no sentido lefortiano do termo, desvinculá-la de um referente único” (idem).
Buriti, ao trabalhar a questão da hegemonia, parte da compreensão do social como uma construção política, afirmando que com Lefort e Laclau o político constitui a origem de qualquer
“arranjo histórico”, sendo, por conseguinte, espaço da “ambigüidade, da contingência, do poder, da heterogeneidade”, com a clareza de que não se pode “escapar à luta para fincar pontos de referência, marcas, limites”, assim como não se pode desprezar a “experiência do transbordamento das margens do social”. Afirma ainda que “essa experiência dupla de contenção/transbordamento é a característica de uma forma de produção social que chamamos democrática”(p.152-153) .
Com efeito, a democracia, considerada como um modo de organização social encontra na participação, na igualdade e na liberdade os seus significantes, que se acham em disputa, inclusive as regras do jogo. Nesse processo é preciso considerar a co-existência de projetos diferentes, de aspirações as mais diversas, o que leva ao entendimento da democracia como significante flutuante vazio, na acepção de Zizek (1993), suscetível a constantes expressões de preenchimento, de busca permanente de construções hegemônicas (LACLAU e MOUFFE, 1985, p. 155).
Na concepção de democracia radical e plural não se vislumbra uma sociedade plenamente democrática, mas um contínuo processo de democratização que poderá se alastrar pelos mais diversos espaços do social, podendo contribuir, inclusive para a realização dos anseios do socialismo.
Desse modo, a construção de uma “ordem mundial multipolar” representa para Mouffe uma necessidade urgente, o estabelecimento de uma ordem mundial pluralista que permita a coexistência de unidades regionais capazes de exibir suas diversidades culturais.
Essa concepção de democracia radical apresenta visíveis diferenças em relação a outras vertentes das correntes democráticas, que já foram apresentadas, cabendo visualizar a democracia como um significante vazio que pode ser preenchido por um determinado discurso, resultante da fixação de sentidos ou de pontos nodais, no determinado momento histórico conjuntural.
É nessa perspectiva que a descentralização como um processo produzido pelo Estado poderá sinalizar ou não para a democratização das políticas públicas, inclusive de políticas educacionais, no caso brasileiro. Assim, para discutirmos o FUNDEF, partimos da descentralização como forma de democratização da educação operacionalizada mediante a municipalização do ensino, através de mecanismos de financiamento educacional.
Para tanto, retraçamos inicialmente a história brasileira de cada um desses processos, observando se o FUNDEF pode ser interpretado como momento que articula os elementos descentralização, municipalização e financiamento da educação.




[1] Após a segunda guerra mundial o mundo ficou dividido ao meio entre capitalistas e socialistas gerando com isso grande conflito político-ideológico entre USA e a União Soviética.
[2] Dentre os vários pensadores podemos citar Weber (1919), Schmitt (1926), Kelsen (1929), Micheles (1949), Schumpeter (1942). R. Dahl (1956), G. Sartori, etc.
[3] “Neste relativismo moral anunciava-se a redução do problema da legitimidade ao problema da legalidade, uma redução que Kelsen extraiu de uma leitura incorreta de Weber.” (SANTOS, 2002, P. 44).
[4] Refere-se a “todas as concepções de democracia que operam com dois elementos: a redução do conceito de soberania ao processo eleitoral e a justificação da racionalidade política enquanto decorrente da presença de elites políticas ao nível de governo” ( AVRITZER, 2002)..
[5] Marx e os marxistas dão ênfase na necessidade de uma soberania plena do povo, isto e´, a participação deve se dar em todos os níveis, do interior da empresa à ocupação dos cargos no governo.
[6] A concepção de Schumpeter remete à manipulação dos indivíduos nas sociedades de massa, pois “os indivíduos na política cedem impulsos irracionais e extra-racionais e agem de maneira quase infantil ao tomar decisões”(SCHUMPETER, 1942, p. 257)
[7] Polemizando com Marx, Weber lança mão do conceito de separação entre trabalhadores e meios de produção, propondo um conceito de complexidade administrativa que encontra na participação um obstáculo (AVRITZER 2001).
[8] Para os pensadores marxistas, a democracia é sobretudo normativa porque tem uma finalidade: tornar um mundo de iguais, sem dominantes e dominados.
[9] Denominação empregada por Santos e Avritzer (2002) e Jessé Souza (2001).
[10] C. Nelson Coutinho desenvolve clássico texto, em 1984, intitulado “Democracia Como Valor Universal” baseado em importante discurso proferido, em 1977, pelo então presidente do PCI Enrico Berlinger.
[11] Conforme Pinto (2005) “os últimos vinte anos têm experienciado um constante alastramento do discurso democrático, acompanhado de tantos significados distintos e, em muitos momentos, tende a perder a especificidade histórica que era própria da noção, em favor de uma idéia difusa e muitas vezes de difícil apreensão”. Sua análise crítica do percurso da democracia aponta para a perda de sua especificidade o que “se reflete claramente em uma perda de conteúdo propriamente político” (Palestra/Seminário Internacional sobre pós-estruturalismo-Recife-PE-2005).
[12] Dallmayr (2001) ressalta Laclau e Mouffe como teóricos alinhados ao pensamento pós-moderno que partem da crítica ao chamado macrossujeito populista, contrapondo-se às teses totalizantes da esquerda política, ao mesmo tempo em que questionam a identidade coletiva ou essencial estável do povo, conforme apregoa o marxismo ortodoxo, questão posta em sua obra Hegemony and Socialist Strategy: Towords a Radical Democracy..
[13] Habermas faz a diferença entre o que ele chama de deliberação pública e demandas sistêmicas da economia e do Estado.
[14] Habermas encontrou nas contribuições de Popper a existência de um “mundo reflexivo” que permite admitir a possibilidade de se construir a ordem social mediante a partilha de significados.
[15] O pluralismo, enquanto um princípio, parte da idéia de que todos os valores, interesses, são tratados de forma igual pelos procedimentos políticos e jurídicos.
[16] Embora não desconhecendo a influência do jogo de interesses na formação da vontade estatal , para Habermas tais interesses são passíveis de uma regulamentação procedimental no âmbito do Estado Democrático de Direito, o que garante formas iguais de participação.
[17] “Portugal foi um dos países pelos quais se iniciou a chamada terceira onda de democratização ainda nos anos 70. Brasil e África do Sul foram países atingidos pela onda de democratização nos anos 80 e 90” (Santos, 2002, p. 55)
[18] Santos distingue quatro espaços políticos estruturais: “o espaço da cidadania, ou seja, o espaço político segundo a teoria liberal; o espaço doméstico, o espaço da produção e o espaço mundial”. Cada um desses espaços é um espaço político específico que comporta uma luta democrática também específica tendo em vista as transformações nas relações de poder que se intenta empreender (SANTOS, 1996, p. 271).
[19] “O contrato social é a metáfora fundadora da racionalidade social e política da modernidade ocidental”. “Constitui a grande narrativa em que se funda a obrigação política moderna, uma obrigação complexa e contraditória”. O contrato social visa criar um paradigma sócio-político que produz de maneira normal, constante e consistente quatro bens públicos: legitimidade da governação, bem-estar econômico e social, segurança e identidade coletiva (...) são, no fundo, modos diferentes mas convergentes de realizar o bem comum e a vontade geral” (SANTOS, 1998, p. 5,7, 11).
[20] Tarefa por demais complexa e difícil diante da desregulação social produzida pela crise do contratualismo, acarretando, como conseqüência a desmobilização de processos de resistência, requerendo que se defina “de modo mais amplo os termos de uma exigência cosmopolita capaz de interromper o círculo vicioso do pré-contratualismo e do pós-contratualismo”(p. 43).
[21] Necessidade de se adotar uma nova epistemologia, contrária, portanto à moderna,que parta de um ponto de ignorância –caos- para chegar a um ponto de saber –ordem-, permitindo passar de um conhecimento regulatório um conhecimento emancipatório.
[22] Enquanto a ação conformista faz a redução do realismo ao existente, a ação-com-clinamen, investindo em átomos de criatividade, concorrendo para que a ansiedade dos excluídos passe a ser ansiedade também dos incluídos.
[23] Principalmente no período do Jacobinismo com Danton e Robesbierre à frente do governo provisório francês. Esse momento radical se caracteriza pelo novo, com o povo, através da assembléia discutia as questões de Estado. A democracia que se viveu nesse curto período da revolução francesa teve grande inspiração em Rousseau.
[24] Essa crise começa a se materializar a partir do momento em que representantes dos trabalhadores começam a ter assento nos parlamentos através da democracia liberal-burguesa. Acreditavam eles que seria possível fazer transformações radicais na sociedade capitalista via parlamento.
[25] GORZ, André. Misére du present, richesse du possible, 1997.
[26] Palestra proferida no Seminário internacional sobre Pos-estruturalismo-Recife, 2005
[27] As críticas feitas por Mouffe aos teóricos da deliberação referem-se ao fato de suas concepções apontarem para a a negação do poder como constitutivo das relações sociais, estando fora dos pactos e dos projetos democráticos, promovendo o que se poderia chamar de despolitização da democracia.