sábado, dezembro 16, 2006

Texto: Participação na gestão e gestão na participaçãoO

1.A experiência recente da democracia brasileira: breves considerações

Itamar Silva

Analisar a participação na gestão escolar pressupõe tecer uma reflexão acerca da democracia, da participação política e do processo de rearticulação da sociedade civil, a partir da emergência dos novos interlocutores sociais que se inscrevem no contexto brasileiro nos anos 80 e 90. Parte-se do pressuposto de que a organização da sociedade civil resulta no fortalecimento de suas instituições. Este texto tem como objetivo apreciar como tem avançado o processo da gestão escolar. Não tem a pretensão de esgotar o tema mas apenas fazer uma breve incursão da participação na gestão escolar.

Não é de agora que os movimentos sociais no Brasil assumem um caráter propositivo de projeto social. Desde o processo constituinte, ainda nos anos 80 e, sobretudo nos anos 90, no século XX , passando pela elaboração da LDB 9394/96 que os movimentos mais progressistas se articularam tendo em vista construir um projeto de educação que atendesse aos segmentos majoritários da população no que diz respeito à universalização da educação básica com permanência, à democratização da gestão e à melhoria da qualidade social da educação pública.

De princípio é interessante afirmar que o ato educativo é um processo de extrema complexidade haja visto a obrigação que se tem de optar por um modelo de sociedade, de homem e de mundo, em tempos de grande desordem, na dita nova ordem mundial marcada, pela globalização excludente e pela nefasta ideologia do neoliberalismo que desmonta o Estado nacional – uma caricatura do Welfaire States europeu - de seu formato que, historicamente, mais se aproximou de um Estado-cidadão.

Passamos por um momento de transição de uma modernidade inacabada justamente pela imperfeição na concretização de seus mais significativos valores, os da liberdade, da igualdade, da solidariedade, da autonomia, da subjetividade e da justiça, e que ainda hoje, cerca de três séculos depois de sua proclamação ainda são perseguidos e desejados, exatamente porque tais princípios poderiam, de certa maneira, contribuir para a efetivação de uma sociedade mais justa, equânime e fraterna.

O imenso desvio na materialização daqueles valores do mundo moderno, gerou, como contrapartida modelos sociais marcados pela competitividade, pelo individualismo nas relações, pelo egoísmo, pela vaidade, pela altivez, pela prepotência, pelo consumismo, pela violência urbana e , conseqüentemente, pelas desigualdades sociais. Estes fatores, muitos deles, aparentemente, exógenos ao processo educativo têm influência direta no cotidiano das escolas e na formação integral dos alunos concorrendo, em última instância, para a gritante fragmentação da sociedade, dividida em múltiplas formas de apartheids.

Assim, a multiplicação e a materialização desses atores sociais fincando os pés, no contexto nacional viabilizou o engendramento de novas formas de participação e de lutas , pela criação de espaços concretos de negociação , levando o Estado brasileiro, sobretudo em nível municipal, a aumentar seu campo de absorção das demandas populares. Na nossa historia a negociação como forma de mediação dos conflitos sociais sempre foi uma utopia, ou talvez melhor uma ópera de humor negro. Hoje se caracteriza por ser uma grande inovação haja visto que é uma realidade os representantes eleitos por suas bases sentarem-se à mesa para negociar novos direitos e a garantia de conquistas anteriores. Estamos no ensaio final da grande peca da democratização social que outrora fora um circo macabro cujo tema era: as questões sociais são casos de polícia.

Assim, o novo desenho social do fazer político introduzido por estes novos atores sociais, valorizando a democracia participativa como elemento fundante de um novo Estado e de uma nova sociedade, parece que contribuiu para a democratização das relações sociais tanto no interior da máquina estatal, quanto na sociedade em geral, inclusive na escola. Isto é, esta nova cultura política foi, pouco a pouco, sendo incorporada à prática social de todas as instituições da sociedade civil e política brasileira.

O estímulo à participação da base através da freqüente realização de assembléias plebiscitárias com caráter deliberativo, à autonomia da organização frente ao poder público, à crítica radical ao modelo tecnocrático civil e militar na condução do Estado, na vida do cidadão e da sociedade em geral e, por fim, a defesa da participação na elaboração e no controle social das políticas públicas, especialmente em nível local, concorreu para incorporar as massas às decisões políticas e para a construção coletiva de uma nova cidadania na história brasileira.

É ainda importante lembrar, neste preâmbulo, que o reaparecimento dos movimentos populares, sindicais e políticos, dar-se no contexto do apagar das luzes do regime militar implantado em 1964 e na ascensão do neoliberalismo como ideologia dominante. A fragilização do bloco-no-poder teve como contrapartida à reorganização da sociedade civil engendrando-se uma nova fase na vida nacional, marcada pelo signo da cidadania e da democracia. Nesse contexto, a luta pelos direitos sociais aparece como uma condição de possibilidade da luta pelos direitos políticos. Da mesma forma que a luta e a conquista dos direitos políticos são encarados como uma condição para a conquista dos direitos sociais e, portanto, da melhoria da qualidade de vida da maioria da população.

Assim, podemos com certeza afirmar, que no Brasil, a experiência da participação da sociedade civil na definição, acompanhamento e avaliação das políticas públicas e, quiçá na elaboração dos projetos político-pedagógicos das escolas é uma inovação muito recente, justamente porque a história brasileira é a história da cidadania negada à maioria da população. Os anos de autoritarismo não são apenas aqueles iniciados com o regime militar a partir de 1964. A nossa história é marcada pela exclusão social e política do cidadão do acesso à informação, aos bens materiais e simbólicos produzidos, à riqueza social e à participação política das camadas populares nas decisões governamentais.

Só em períodos mais recentes, sobretudo a partir de meados dos anos 80, é que o povo emerge como sujeitos histórico-sociais, protagonizando conquistas e, assim, vai atingindo à sua maioridade enquanto cidadão. Coletivamente, a cidadania foi se construindo, através da sua luta contra o regime militar, abrindo caminhos, ampliando e conquistando espaços e, assim, pouco a pouco, vai alçando a bandeira da cidadania no regime discricionário.

Concomitante ao processo de democratização social, o sistema educacional e a própria escola vão passando por significativas mudanças. Também bate às portas das escolas a democratização se suas estruturas, especialmente à luta pelas eleições diretas para diretor e à luta pela implantação dos conselhos escolares com caráter deliberativo e propositivo e, nas escolas confessionais católica o planejamento participativo.

Todo essa mobilização em prol da cidadania e da democracia foi sensibilizando a sociedade civil e, de certa forma, parte significativa da própria classe política, conquistando seus corações e suas mentes. O movimento pelas diretas, em 1984, revela esse grande momento histórico nacional que fora marcado pelo clamor dos excluídos, pela emoção, pelo sentimento de brasilidade fazendo aflorar em seus espíritos o desejo de se viver em um país mais justo e mais democrático em que a população participasse dos rumos do país enquanto cidadãos ativos, livres e conscientes de seus direitos e deveres .

O contrato social que se estabeleceu, implicou na invenção de um novo formato de Estado, de direitos, de novas organizações na sociedade civil, e do advento de um tipo de cidadania articulado com esse novo mundo. Todos esses institutos adquirem configurações profundamente distintas no mundo moderno. Por conseguinte, a forma de gerir-lo também muda profundamente.

A experiência da participação social é uma prática educativa de formação para a cidadania que instrumentaliza a população para intervir nas coisas de Estado e a reforma-lo de baixo para cima, desenvolvendo, assim, a consciência de uma cidadania ativa para que represente, verdadeiramente, o seu papel de sujeitos da transformação social. Essa prática significa que o povo passa a exercer a sua soberania, passa exercer o seu direito de governar e o seu poder de cidadão, significando ainda a materialização literal do conceito etimológico de democracia que os gregos definiam como o governo ou o poder do povo, segundo analisa Pateman (1992).

Todo esse processo de democratização do todo social refletiu na educação, tanto nas escolas públicas quanto nas escolas confessionais que passa a elaborar o seu projeto educativo a partir da metodologia do Planejamento Participativo perseguindo os valores de uma educação libertadora. A escola passa a desenvolver uma forma de planejamento em que a consulta e a proposição de alunos, pais, professores, equipes técnicas tem sido fundamental.

A vivência dessa prática vem contribuindo, ao longo dos anos, para a consolidação de um modelo educacional que busca a qualidade, trabalhando a consciência dos alunos a partir da leitura crítica da realidade, tornando-os, assim, não apenas cidadãos a par dos grandes problemas sociais mas, ao mesmo tempo com a clareza de como combate-los, tanto pela via política, quanto pelos movimentos da sociedade.

O mundo liberal inventa a democracia . Nesse contexto, o seu caráter se afina com valores da sociedade burguesa, sobretudo àqueles que reforçam a concepção individualista de sociedade: o direito à propriedade à igualdade formal e à liberdade de ter.

Mas, contraditoriamente, a visão de mundo burguês abre canais que possibilita aos indivíduos se tornarem cidadãos, indivíduos-cidadãos portadores de direitos.

Assim, os debates, as polêmicas, os conflitos no ato da participação, sobre os direitos de cidadania, Estado e democracia estão no cerne do próprio modelo de modernidade trazendo tais discussões ao epicentro da própria sociedade. Vale lembrar que os direitos são sempre o resultado de um processo histórico por meio dos quais os indivíduos, grupos e nações lutam para adquiri-los e fazê-los valer em suas vidas.

Historicamente, o contrato social nasce com o propósito de mediar a tensão dialética entre vontade individual e vontade geral, isto é, representa a expressão do conflito entre o interesse particular e o bem comum e, em última instância, entre o público e o privado.

A exemplo de qualquer outro contrato, o pacto social que surge com a modernidade se baseia na idéia da inclusão. Contudo, enquanto definidor de regras, estabelece os parâmetros de possibilidades e limites daqueles que se inscrevem ou não nesse contrato social.

Segundo Boaventura Santos (1998c), são três os princípios do contrato social que definem a inclusão no estado civil:
I. "o primeiro é que o contrato social inclui apenas os indivíduos e suas associações", do que se deduz que a natureza está à margem do contrato. Isso implica afirmar que "o que está antes ou fora dele se designa por estado de natureza".
II. O segundo, é o critério "da cidadania territorialmente fundada". Somente os cidadãos constituem-se enquanto parte do contrato social. “Todos os outros - sejam eles mulheres, estrangeiros, imigrantes, minorias (e, às vezes maiorias) étnicas – são dele excluídos. Vivem no estado de natureza mesmo quando vivem na casa dos cidadãos”.
III. O terceiro critério ou princípio, "é o (do) comércio público dos interesses. Só os interesses exprimíveis na sociedade civil são objeto do contrato. Estão, portanto, fora dele a vida privada, os interesses pessoais de que é feita a intimidade e o espaço doméstico" (Boaventura Santos, 1998c:6,7).

Hoje, as sociedades concebidas através daquele modelo de contrato sobrevivem em profunda crise materializada na sua fragmentação em múltiplas formas de apartheids, vista nos indicadores da violência urbana, na perda da legitimidade do Estado e na sua capacidade regulatória, na ineficácia da democracia representativa e na extrema desigualdade econômica e, conseqüentemente, de poder, se consubstanciando em amplo processo de exclusão social, ao contrário do que propunha a teorização da cidadania, a inclusão.

Nesse contexto, ainda recorrendo a Boaventura Santos (1998c), ele mostra que "os valores da modernidade – a liberdade, a igualdade, a autonomia, a subjetividade, a justiça, a solidariedade - e as antinomias entre eles, permanecem, mas estão sujeitos a uma crescente sobrecarga simbólica, ou seja, significam coisas cada vez mais díspares para pessoas ou grupos sociais diferentes, e de tal modo que o excesso de sentido se transforma em paralisia da eficácia e, portanto, em neutralidade" (Boaventura Santos, 1998:18).

Frente a essa adversidade, o povo está reinventando um novo contrato social e um novo Estado , tendo em vista não apenas a inclusão de direitos na sua materialidade jurídico-institucional mas, sobretudo, garantir a sua efetividade. No entanto, é preciso ter em consciência que qualquer forma de direitos para a maioria da população, quer sejam eles direitos civis, políticos ou sociais, somente se firmam através de uma predisposição obstinada para a guerra.

Buscando interpretar, historicamente, como a cidadania vai se constituindo no mundo ocidental moderno, Marshall (1967) tece uma clássica análise do processo de formação da cidadania na Inglaterra e, não obstante, ser uma interpretação muito linear e quiçá, funcionalista, vem dominando a ciência política há bastante tempo.

Parte do princípio de que os primeiros direitos instituídos foram os civis, no século XVIII, estabelecendo-se, em seguida os direitos políticos, no século XIX e, finalmente, no século XX, os direitos sociais.

Os direitos civis estão colados às liberdades individuais, direitos de ir e vir, às liberdades religiosas, de pensamento, da propriedade privada, de justiça e de resistência à opressão. Estes direitos serviram de base para o surgimento do liberalismo, isto é, a ideologia da burguesia, a classe social emergente.

Os direitos civis começam a se definir, pelos contratualistas ingleses, na passagem da sociedade feudal para a sociedade burguesa, ou seja na transição das sociedades tradicionais, compreendidas na concepção weberiana, para as sociedades modernas. Engendram-se no contexto da formação do Estado moderno. Dessa forma, a luta pela liberdade, sobretudo econômica, cria um espaço de delimitação entre Estado e não-Estado. Assim, os direitos civis são, pois, direitos contra o Estado à medida que buscam uma esfera de liberdade em relação ao Estado e, portanto, nesse significado, são chamados de direitos negativos. Dessa forma, vai nascendo a sociedade contratual tendo como alicerce a invenção do próprio Estado.

Nesse contexto, o Estado moderno surge com a missão de legitimar a concepção individualista de sociedade - o mundo burguês -, à proporção que busca garantir direitos ditos preexistentes à própria formação da sociedade, a exemplo da propriedade privada e da liberdade. Nesse direito, cognominado de jusnaturalismo, estava impregnada a concepção burguesa de sociedade. Na prática, os assim chamados direitos civis, os direitos negativos, criam um espaço de produção, distribuição e circulação das mercadorias, sem a necessidade da regulação do Estado racional-legal.

Com as idéias contratualistas de Locke , as relações sociais burguesas configuram-se de forma mais nítida no limiar do século XVIII. Seu axioma em torno da origem e dos objetivos do governo civil e, principalmente, a sua exaltação ao indivíduo foi de importância fundamental para a consolidação da nova ordem social. Porém, contraditoriamente, em seu pensamento que, a priori privilegia a concepção individualista de sociedade, está inscrita a democracia liberal burguesa.

Em conformidade com as novas idéias, o indivíduo é considerado enquanto um ser autônomo e dotado de todas as faculdades mentais e racionais. Ele se basta a si mesmo; torna-se um ser independente chegando, assim, a maior idade, denominada idade da razão. Nesse estágio de evolução, designado por Locke de estado de natureza, os homens "nascem livres na mesma medida em que nascem racionais". Os homens, por conseguinte, seriam iguais, livres, independentes e governados pela razão. O estado de natureza seria a condição na qual o poder executivo da lei da natureza permanece exclusivamente nas mãos dos indivíduos, sem se tornar comunal. Todos os homens participaram dessa sociedade singular que é a humanidade, ligando-se pelo liame comum da razão. No estado de natureza todos os homens teriam o destino de preservar a paz e a humanidade e evitar ferir os direitos dos outros.

Os direitos políticos, foram sendo engendrados nas lutas impingidas pelos democratas e socialistas ao longo do século XIX. Segundo, Marshall (1967) esses direitos garantem a participação soberana do povo nas instituições públicas, antes reservada apenas para aristocracia. Essa dimensão da cidadania inclui o direito de eleger representantes, de ser eleito e da liberdade de associação. Uma referência importante que revela a ampliação desses direitos é o processo de expansão do sufrágio universal.

Os direitos políticos são produtos dos conflitos que se estabelecem na sociedade burguesa plenamente consolidada. Resultam das lutas pela democracia e pela ampliação da cidadania que estão circunscritas na sociedade capitalista. Assim, quanto mais os cidadãos participam sobre os destinos da coisa pública, isto é, quanto menos meros espectadores forem, maior será a probabilidade de se ter um Estado mais compromissado com o interesse geral da sociedade.

Diferentemente dos direitos civis, os direitos políticos são também chamados de direitos positivos, justamente por serem direitos criados pelo Estado através de regras de caráter racional e universal, garantindo aos membros de uma comunidade, município, estado ou nação, participarem direta ou mediante representantes legais, nos órgãos públicos, como o parlamento ou mesmo no Poder Executivo e, assim, decidirem acerca dos negócios de Estado. Esses dois conjuntos de direitos de cidadania - civis e políticos -, combinados, constituem o alicerce das democracias liberais que se estabeleceram no século XIX e se consolidaram no século XX.

Historicamente, os direitos políticos, na sociedade capitalista, têm se materializado, principalmente, através da democracia representativa, isto é, o exercício do poder político é delegado a algumas pessoas que tem a tarefa, em nome da maioria, de encaminhar as coisas do Estado. Essa Forma de participação política cria uma possibilidade dos negócios de Estado serem efetuados de forma mais “transparente”, à medida que proporciona maior controle da sociedade sobre a coisa pública.

No entanto, nos últimos dois séculos de sua vivência, a democracia representativa vem evidenciando grandes limitações haja visto que muitas de suas promessas não foram cumpridas existindo, assim, um nítido distanciamento", como afirma Bobbio (1986), entre os "ideais democráticos e a democracia real" (Bobbio, 1986:20) . A usurpação do poder e a sua degeneração para a corrupção tem sido marcas muito presentes na democracia por representação.

Por fim, os direitos sociais foram inscritos no desenho jurídico mais tardiamente. Somente no decorrer do século XX eles foram se firmando, especialmente nos países centrais. Configuram-se por serem mecanismos de correção das desigualdades que são geradas pelo mercado, no sistema capitalista de produção. Para tanto, o Estado vai assumindo tarefas que historicamente estavam delegadas à sociedade. A sua intervenção deixa de limitar-se, tão somente, à regulação dos conflitos e à defesa da propriedade e da soberania nacional, mas passa a ter uma atuação de correção das injustiças sociais geradas pela selvagem competição do mercado, que não admite preocupações com o bem estar da população, mas sim, com a reprodução ampliada do capital.

Assim, a inscrição dos direitos civis, políticos e sociais no desenho institucional concorreram para que as relações sociais entre indivíduos, na modernidade, se estabelecessem, predominantemente, de forma racional, distanciando-se das relações de afinidades, de parentesco e de privilegiamento tal qual ocorria nas sociedades tradicionais.

Nesse sentido, a institucionalização dos direitos de cidadania no Estado resulta, por um lado, da luta da burguesia contra o "Ancien Regime", estabelecendo a nova ordem social, por outro, das lutas dos movimentos sociais no interior deste novo regime, buscando o reconhecimento, no plano jurídico-institucional, de novos direitos, estendendo-os, inclusive, para a maioria da população. É nesta arena de lutas que vai se forjando tanto a cidadania, quanto a democracia, tomada enquanto um regime da soberania popular e do Estado de Direito, o típico Estado Burguês justamente por identificar soberania e governo.

Contudo, a democracia representativa tem revelado, ao longo de sua existência limitações e imperfeições estando num permanente vir-a-ser de recriação e de reinvenção. Vivenciar a democracia enquanto processo, supõe reinventá-la sempre na possibilidade de sua própria superação, não somente na extensão do sufrágio ou na clareza das regras do jogo mas, sobretudo, na consolidação de relações em que a participação cidadã da sociedade civil concorra para a instalação de uma sociedade justa, solidária e autônoma.

É inquestionável a importância da inscrição, ainda que no plano formal, da democracia representativa e da cidadania mas, como já foi ressaltado, são nítidas as suas debilidades e limitações. Nesse sentido, busca-se formas de avançar e de aperfeiçoar esse modelo de democracia combinando-a com configurações mais efetivas de participação da população ampliando, assim, tanto a democracia representativa quanto a cidadania.

Nesse contexto, ensaios de democracia direta, prática que vem se ampliando, inclusive, em países emergentes como o Brasil, vai se tornando uma realidade concreta, especialmente, na vivência dos conselhos gestores de políticas públicas e do Orçamento Participativo, nas eleições diretas para reitores de Universidade e chefes de Departamentos, para diretor de escolas, para os conselhos escolares e mais recentemente nas constituintes da cidade e de escolas.

Esses institutos parecem estar concorrendo para a instalação de uma cultura política diferente, mais democrática, mais participativa e, portanto, mais cidadã, contribuindo, dessa forma, para que a coisa pública se dê com maior transparência e maior controle da sociedade na administração de recursos materiais e financeiros advindo dos tributos.

Assim, a entrada de institutos de democracia direta combinados aos institutos da democracia representativa vem funcionando, não como mecanismos conflituosos de participação, como anunciava Bobbio, mas, aperfeiçoando a própria democracia representativa.

Trata-se, portanto, de conceber a participação política num nível mais ampliado, isto é num nível de superação dialética. Analisando esse novo contexto Benevides (1991) mostra que, "a complementaridade entre representação tradicional, (eleição de representantes do Executivo e Legislativo) e forma de participação direta (votação em questões de interesse público) configura um sistema que pode ser denominado de democracia semidireta. Tal sistema é bem sucedido quando propicia equilíbrio desejável entre a representação e a soberania popular direta" (Benevides, 1991).

Assim, institutos como os conselhos gestores de políticas públicas, plebiscito, referendum, orçamentos participativos, são apontados como mecanismos que viabilizam o aperfeiçoamento da democracia tradicional ou representativa. São, portanto, formas de participação que funcionam e tencionam como instrumentos de correção desse tipo de democracia. É interessante notar como esse nível de participação pode ser extensivo à esfera administrativa, complementar, pois, em nível político, "a participação de trabalhadores na gestão das empresas; dos usuários na gestão dos serviços públicos; dos estudantes e funcionários na gestão das universidades e escolas" (Idem), caracteriza uma representação direta na gestão da coisa pública e, por conseguinte, identifica democracia e soberania popular.

O próprio Bobbio (1986), em que pese a sua aparente preferência pela democracia representativa constata que "inexistem na atualidade, democracias exclusivamente parlamentares - na medida em que formas de representação convivem com mecanismos de participação direta dos cidadãos - e tampouco democracias diretas puras. Portanto, não teria sentido falar em democracia direta como se fosse regime realmente existente - mas apenas em formas de democracia direta, ou, então, em mecanismos de democracia direta, que nunca existem isoladamente. Dentre as formas, por exemplo, destacam-se os conselhos populares, as assembléias, as experiências de autogestão. Os mecanismos podem existir na esfera administrativa, judiciária ou legislativa como o mandato imperativo, as ações populares" (Bobbio,1986).

Assim, nessas circunstâncias, as experiências da democracia direta, à medida que concorrem para o ajustamento e o aperfeiçoamento da democracia se colocam como mais um importante mecanismo de luta da população na busca da ampliação de seus diretos humanos e de cidadãos. Noutras palavras, a presença desses organismos de base no plano institucional, possibilitam uma real participação cidadã nas decisões políticas, isto é, articulam e organizam os interesses da população em geral em reivindicações diretamente orientadas para o Estado. A transparência da coisa pública e de sua gestão é a contribuição mais significativa que a democracia participativa pode propiciar à sociedade.

Com esse processo de aperfeiçoamento da democracia, novas formas de relações sociais vão se tecendo, engendrando-se uma esfera pública mais participativa e mais democrata. Como essa discussão se articula com as escolas?



2. ESCOLA E DEMOCRACIA

São grandes os avanços que a escola vem dando nas últimas décadas, no que diz respeito à sua democratização a partir, sobretudo da sua articulação com os movimentos organizados dos professores e a sociedade civil em geral. Hoje, é quase uma unanimidade o reconhecimento da importância das eleições diretas para diretor de escola e dos conselhos com caráter deliberativo, bem como o significado especial que tem os grêmios livres, as associações de pais e o planejamento participativo articulado ao ideal de escola libertadora.

As escolas confessionais também avançam, embora em descompasso com as escolas públicas, porque perseguem muito mais a dimensão pedagógica do que a democratização de suas estruturas. Contudo, o projeto pedagógico construído a partir do planejamento participativo sempre cria espaços para se ir além.

É muito difícil discutir um projeto de homem, de sociedade e de mundo sem bater nas questões sociais e endógenas à escola, como por exemplo, a concentração de rendas, o desemprego, a exclusão social, como também as relações sociais internas entre professor x alunos x família x comunidade, o sistema de avaliação, talvez este, o maior instrumento nas escolas de reprodução da ideologia dominante e por conseguinte das estruturas sociais.

A expectativa que temos de construir um Brasil para a maioria, mais justo e mais igualitário está na ordem do dia, sobretudo depois que a esperança venceu o medo.

Numa escola democrática não se pode apenas ficar no discurso ela tem de ser, principalmente uma prática no seu cotidiano. É importante se pensar a escola na sua totalidade, sobretudo na sua relação com o sistema educacional e o social. A função primordial da escola é formar cidadãos críticos e capazes de serem sujeitos históricos. É fazer uma educação de qualidade para a maioria; é preparar o cidadão para se engajar no mundo do trabalho e não apenas no mercado de trabalho.

Temos inúmeras experiências de democratização do sistema escolar. A literatura está repleta de pesquisas. A revista v.18, n. 1 e n. 2 de 2002 da ANPAE relata uma série de pródigas pesquisas na área de gestão escola.

Contudo, é fundamental que as escolas partam de sua prática, de sua realidade, com seus avanços e limites. Alguns exemplos são importantes para que aguce o potencial criativo dos educadores. Por exemplo: fazer uma constituinte ou um congresso na escola com ampla participação é uma grande idéia.

Nesse encontro pode-se discutir dentre outras coisas, regimento escolar, projeto pedagógico, sistema de avaliação, disciplina na escola, conteúdos escolares etc. Para tanto, pode a escolar convidar pessoas que possam ajudar nesse empreendimento. É bom contar com assessoria mas, a prata da casa tem de se engajar. Os pais podem ser convidados para fazer uma ou mais palestra sobre um tema geral do encontro ou mesmo de um subtema.

No entanto, o mais importante é colocar em prática as deliberações de um encontro dessa natureza. É isso que vai dar credibilidade à escola e aos conteúdos que são discutidos no seu interior. Não é por acaso que a santa palavra exige muito mais o testemunho do que a proclamação.

Um congresso dessa natureza pode ter uma grande repercussão,inclusive atraindo a própria mídia.

Comissões formadas por professores, equipes técnicas, alunos e pais podem ser criadas para acompanhar a execução das grandes deliberações do congresso. Assim se constitui um grupo de controle, fundamental em qualquer democracia. Uma palavra que está muito em moda hoje se chama de accountability isto é, a prestação de contas das lideranças ou mesmo de uma organização, como é ocaso da escola, aos seus liderados ou a sua comunidade quer seja interna ou externa.

A origem etimológica da palavra gestão, de acordo com Cury, vem do verbo latino gero, gessi, gestum, gerere e significa levar sobre si, carregar, chamar a si, executar, exercer, gerar. Trata-se de algo que implica o sujeito. E só se é sujeito numa relação ou organização quando se toma parte, participar, participação cidadã que quer dizer: fazer ou tomar parte, no processo político-social, por indivíduos, grupos, organizações que expressão interesses, identidades, valores que poderiam se situar no campo particular, mas atuando no espaço de heterogeneidade, diversidade, pluralidade.

O segundo elemento é cidadania – participação cidadão -, “no sentido cívico, enfatizando as dimensões de universalidade, generalidade, igualdade de direitos, responsabilidade e deveres. A dimensão cívica se articula à idéia de deveres e responsabilidades, à propensão ao comportamento solidário, inclusive relativamente àqueles que, pelas condições econômico-sociais, encontram-se excluídos do exercício dos direitos, do direito de ter direitos” (Teixeira, 2001:32).

Assim, na escola cidadã nega-se a pedagogia conformista e alienante que sustenta a visão de que a História é um movimento rigorosamente pré-ordenado de realização da necessidade de reprodução ampliada do capital. Nela também se supera a pedagogia ingênua e doutrinária, fundada numa concepção rigorosamente determinística da História (Genro 1999:10).

Uma escola participativa e democrática, a escola cidadã, é um espaço racional de superação dialética. Nela a cidadania se efetiva radicalmente e os educadores e educandos encampam àqueles valores inconclusos da modernidade mencionados lá no início de nossa fala, porque nela, se formam indivíduos-cidadãos, construtores, transformadores, engajados e, acima de tudo solidários.

Enfim, a democratização da escola e da sociedade nunca está acabada. Ela é um processo, está sempre em construção e reconstrução. São importantes os avanços, mas quando olhamos a realidade nua e crua ficamos ainda muito tristes por sabermos que o caminho a percorrer ainda é muito longo. Mas não temos que desanimar, muito pelo contrário; vamos à luta e continuar perseguindo uma escola democrática e de qualidade social para maioria; todos nós queremos uma escola assim e um Brasil mais justo. Portanto vamos trabalhar e nos engajar nessa luta que é em prol da maioria.



BIBLIOGRAFIA

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo, Paz e Terra, 1986.
Democratizar a democracia: os caminhos da democrática participativa. Boaventura de Souza santos (Org.).Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
Escola Cidadã:teoria e prática (org.) Luiz Heron da Silva. Petrópolis: Editora vozes, 1999.
Revista Brasileira de Política e Administração da Educação. (RBPAE), São Bernardo do Campo, v18, n.2, jul/dez, 2002.
PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Trad. Luiz Paulo Rounet. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
TEIXEIRA, Elenaldo Celso. O local e o global: limites e desafios da participação cidadã. S. Paulo: Cortez; recife: EQUIP; Salvador: UFBA, 2001.